CRÓNICAS NO FEMININO
CANETA DE TINTA PERMANENTE
No alto da colina, o edifício mantém-se. A diferença é que antes não existia a avenida rasgada de alto a baixo, fruto da teimosia de uma mulher (das poucas que após Abril passaram a governar autarquias) contra a vontade de alguns, provincianamente agarrados à pequenez do seu mundo. Outra diferença ainda é que há muito deixou de existir a separação entre os géneros. Os dois blocos – masculino e feminino – modelo padronizado das escolas do Estado Novo, continuam de pé, se bem que as aulas e o recreio não sejam já determinados pelas linhas anatómicas de quem os frequenta. Tempos de mudança que a minha avançada idade aplaude, mas não me impede de viajar pelo passado longínquo de menino pobre.
Insisto em lembrar caras de colegas, mas não consigo; elas esfumam-se na neblina que apaga os nomes sem rosto, escritos no rectângulo negro da lousa, de cada vez que o professor faz a chamada. Ficou apenas um: de traço fino, bem delineado, tez clara, cabelo aparado, bata impecavelmente branca e botas (luxo de poucos), que lhe aqueciam os pés. Tinha um ar frágil, como quase todos os meninos criados com as mordomias das famílias abastadas. Não se embrulhava em brigas, não rebolava pelo chão, não arranhava os joelhos no pó da terra, porque tinha de chegar a casa com o mesmo ar com que tinha saído – o cheiro a limpo e a franja moldada pela camada de brilhantina. Não o invejávamos no recreio, porque lhe eram vedadas todas as brincadeiras que descambassem no desalinho da sua figura de manequim. No entanto, dentro da sala de aulas, ele possuía o brinquedo mais cobiçado por todos – uma caneta de tinta permanente. Enquanto nós arranhávamos as palavras e os números, por força de um aparo que há muito havia ultrapassado o prazo de validade, ele comprazia-se em fazer deslizar, sobre a folha pautada do caderno, a sua caneta de tinta permanente. E nós ficávamos pasmados a olhar para aquela maravilha que não precisava de, constantemente, mergulhar no tinteiro do tampo da carteira, para se reabastecer de autonomia para mais uma cópia ou uma série de operações aritméticas. Ele escrevia e olhava-nos de soslaio, porque, no enviesado do seu olhar, percebia o desejo mal disfarçado que todos tínhamos de lhe pedir emprestado o objecto dos nossos sonhos. Até os exercícios de caligrafia ficavam mais bonitos! Pudera... ele não precisava de interromper o curso de nenhuma das hastes porque, no ventre da sua caneta, havia um êmbolo de borracha que guardava o suficiente para horas de trabalho.
Um dia descobri a solução. O que me faltava em riqueza, sobrava-me em rapidez e agilidade mental. Propus-lhe um negócio: ele emprestava-me a caneta por uns minutos e eu fazia-lhe os trabalhos de casa. E assim mantivemos esta cumplicidade de um comércio vivido na clandestinidade de outros olhares.
De cada vez que olho para o meu velho e desbotado diploma do ensino elementar, o jovem aprumado da Mocidade Portuguesa que, do lado esquerdo segura o estandarte, faz-me sempre lembrar o menino da caneta de tinta permanente – um aprumo prenhe de orgulho, por força de uma diferença que lhe alimenta as entranhas.
AIDA BAPTISTA
Insisto em lembrar caras de colegas, mas não consigo; elas esfumam-se na neblina que apaga os nomes sem rosto, escritos no rectângulo negro da lousa, de cada vez que o professor faz a chamada. Ficou apenas um: de traço fino, bem delineado, tez clara, cabelo aparado, bata impecavelmente branca e botas (luxo de poucos), que lhe aqueciam os pés. Tinha um ar frágil, como quase todos os meninos criados com as mordomias das famílias abastadas. Não se embrulhava em brigas, não rebolava pelo chão, não arranhava os joelhos no pó da terra, porque tinha de chegar a casa com o mesmo ar com que tinha saído – o cheiro a limpo e a franja moldada pela camada de brilhantina. Não o invejávamos no recreio, porque lhe eram vedadas todas as brincadeiras que descambassem no desalinho da sua figura de manequim. No entanto, dentro da sala de aulas, ele possuía o brinquedo mais cobiçado por todos – uma caneta de tinta permanente. Enquanto nós arranhávamos as palavras e os números, por força de um aparo que há muito havia ultrapassado o prazo de validade, ele comprazia-se em fazer deslizar, sobre a folha pautada do caderno, a sua caneta de tinta permanente. E nós ficávamos pasmados a olhar para aquela maravilha que não precisava de, constantemente, mergulhar no tinteiro do tampo da carteira, para se reabastecer de autonomia para mais uma cópia ou uma série de operações aritméticas. Ele escrevia e olhava-nos de soslaio, porque, no enviesado do seu olhar, percebia o desejo mal disfarçado que todos tínhamos de lhe pedir emprestado o objecto dos nossos sonhos. Até os exercícios de caligrafia ficavam mais bonitos! Pudera... ele não precisava de interromper o curso de nenhuma das hastes porque, no ventre da sua caneta, havia um êmbolo de borracha que guardava o suficiente para horas de trabalho.
Um dia descobri a solução. O que me faltava em riqueza, sobrava-me em rapidez e agilidade mental. Propus-lhe um negócio: ele emprestava-me a caneta por uns minutos e eu fazia-lhe os trabalhos de casa. E assim mantivemos esta cumplicidade de um comércio vivido na clandestinidade de outros olhares.
De cada vez que olho para o meu velho e desbotado diploma do ensino elementar, o jovem aprumado da Mocidade Portuguesa que, do lado esquerdo segura o estandarte, faz-me sempre lembrar o menino da caneta de tinta permanente – um aprumo prenhe de orgulho, por força de uma diferença que lhe alimenta as entranhas.
AIDA BAPTISTA
Apontamentos anticancro 10
«Antes de roçarmos a mortalidade, a vida parece-nos infinita, e preferimos manter esta perspectiva. Parece que nunca nos faltará tempo para irmos em busca da felicidade. Primeiro, tenho de acabar o curso, pagar os empréstimos, criar os meus filhos, reformar-me… mais tarde hei-de preocupar-me com a felicidade. Quando deixamos para amanhã a procura do essencial, podemos deixar a vida escapar-nos por entre os dedos sem sequer a termos saboreado.
Por vezes, o cancro cura esta estranha miopia, esta dança de hesitações. Ao expor a brevidade da vida, um diagnóstico de cancro pode restituir à vida o seu verdadeiro sabor.»
Do livro «Anticancro – um novo estilo de vida» de David Servan-Schreiber.
6 Comentários:
Às 31 de maio de 2010 às 07:56 , Laura disse...
Ah, estou sem pc, emperrou e não ata nem desata, neste momento uso o do manel que vai para a escola daqui nada e...fico a navegar em águas de bacalhau..
Amei ler...usei os mesmos aparos na caneta que era um pedaço de madeira, os aparos que partiam ou abriam ao meio, tanta a força que exercia neles, mas, não esqueças que com ele, aprendemos a escrever e mais que isso, a delinear uma linda letra, coisa que a caneta não deixava...
Tive das duas, a primeira era o que se usava, a segunda entrou naturalmente no seu tempo...
Viste, tiveste de trabalhar a dobrar mas tiveste uma caneta de tinta permanente, rasgaste calças , esfolaste joelhos, mas, viveste a vida e o menino bem, esse sabe lá o que é isso...
Lindo relato, já tinha saudade de ler coisa assim escrita por ti.
Aquele apertadinho abraço, hoje estarei sem o desgraçado do meu pc e andarei pela rua a tratar de assuntos meus, assim..té logo á noite..laura
Às 31 de maio de 2010 às 09:47 , Kim disse...
A estória da caneta de tinta permanente é um pouco como a do menino que era dono da bola mas não sabia jogar com ela.
O apontamento ANTICANCRO de hoje é duma profundidade tamanha.
Às vezes, a desgraça acaba por nos fazer conhecer a verdadeira felicidade.
Grande abraço amigo André
Às 31 de maio de 2010 às 18:45 , Osvaldo disse...
Cara Aida;
Nunca tive a farda da Mocidade porque politicamente e economicamente não pertenciamos à alta "casta tabuacense" onde apenas os filhos dos mais abastados as poderiam usar e eu era apenas o filho do chauffer da camioneta de passageiros do trajeto Longa-Tabuaço-Régua ou da Paredes da Beira-Tabuaço-Pinhão. Nunca me fêz falta até porque eu era mais levado a belos despiques confrontoais na Relva ou no velhinho Estádio do Bacalhau e claro, se tivesse que usar assa farda, seria severamente punido pelos politicamente corretos "engraxa botas" do antigo regime. Não é que eu tivesse algo contra esse famigerado antigo regime, até porque nem conhecia o dito Senhor que caiu da cadeira, mas sim contra os "escovas" que nos enfernizavam e a alguns escravizavam a vida.
Talvez por isso nunca tive caneta de tinta Permanente enquanto os filhos dos "engraxas" tinham. Mas nunca me fez falta, porque afinal... também aprendi a escrever.
Mas havia pessoas maravilhosas e lembro aqui com todo o respeito a professora Amália. Não era e nunca foi minha professora. Eu era e sempre fui aluno do professor Machado. Mas no meu exame da 3° Classe, sim porque nesse tempo na 3° e na 4° havia exames, na prova de matemática, tinha o (pequeno) grupo da Tinta Permanente, o grupo dos da Pena e Lousa e alguns rebeldes da situação (como eu) que queriam apenas uma oportunidade de mostrar que não era a Caneta mas sim a Tinta que deixava marcas. E quando os examinadores vindos de Viseu acabaram de ditar as questões eu fiquei imóvel e a professora Amália perguntou-me se eu não ia responder. Foi então que eu disse que já tinha respondido. A professora Amália pegou-me a folha de cima da carteira, olhou-a e com um sorriso de ternura disse-me; Osvaldo, podes sair.
Não precisei de uma Caneta de Tinta Permanente para fazer as equações e responder aos problemas matemáticos... enquanto um dos examinadores as ditava!.
Hoje, tenho algumas de grandes marcas, que me são ofertas por pessoas com grande importância a nivel estatal e cultural de vários países. Nunca as uso, mas confesso que sempre me deixam um certo sorriso quando as recebo...
As voltas que o Mundo dá!...
Beijinho de respeito para a Aida e um grande abraço para o meu irmâo Moa
Às 31 de maio de 2010 às 22:44 , Andre Moa disse...
Laura, este texto é da Aida Baptista e não meu. Atenção: pare, escute e olhe.
É isso mesmo, amigo Kim. A felicidade quase sempre mora ao nosso lado. Nós é que, distraídos, raramente a vemos.
Pois foi, irmão Osvaldo: mordíamos a língua, borratávamos os dedos, mas o saber, esse, chupávamo-lo nós, que nem mata-borrão, com o bestunto que a natureza nos deu e colocou na cabeça e não na ponta da caneta.
Abreijos
André Moa
Às 31 de maio de 2010 às 23:51 , Laura disse...
Pare, escute, olhe e pensei que era teu por ter os ninos com a farda da mocidade Portuguesa, mas que patató eu fui...vá, linda a crónica da senhora, as minhas desculpas... parece que estou num certo almoço e não via mais ninguém... Beijinho aos dois, laura
Às 1 de junho de 2010 às 16:31 , Anónimo disse...
Caro irmão André Moa.
A nossa amizade inquebrantável nada tem a ver com o teu blog. Nasceu antes dele e há-de continuar para além dele até que a morte nos separe.
Pressinto que os meus poemas e prosas poéticas, esparramados no post, estão a aborrecer os habituais comentadores. Continuar seria um desrespeito para com os teus amigos assíduos no acompanhamento da tua doença. Os seus carinhos, incentivos e preocupações comovem-me. Sem os conhecer, merecem-me, apesar disso, a minha eterna amizade.
E quero pagar-lhes o tanto que te dão com o meu afastamento. É o mínimo que posso fazer.
Continuarei a dar-te música de Mozart através do meu telefone. Que paciência a tua!
Um grande abraço e um beijo da Judite.
Ernesto Leandro
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