CRÓNICAS NO FEMININO
APITA O COMBOIO
Era muito pequena - oito anos franzinos, mas um ouvido bem treinado e atento aos barulhos que durante o dia rasgavam os céus da sanzala. Aquele tu ... tu... tu.u.u.u.. prolongado - um silvo inconfundível ao cair da tarde - anunciava a chegada do comboio da cana à margem norte do rio Cavaco. A partir dali a marcha abrandava porque o rio demarcava a linha de entrada no coração da cidade.
O eco do último "tu..." era o tiro de partida para a correria que, em período de férias, nos levaria (a mim e ao meu irmão) até junto da linha férrea. Primeiro, o fumo a romper por entre as acácias coloridas; depois, o corpo inteiro da lagarta, a estremecer os espaços onde se apoiavam os ganchos que separavam os vagões carregados de troncos de cana de açúcar.
Víamo-los negros, muito escuros, queimados. Nunca fiz perguntas. Acho que naquela época, entretida a viver a minha curta infância, não precisava de respostas. Não me interessava saber a razão por que faziam queimadas nas plantações da cana. Bastava-me aquele cheiro forte do açúcar em fermentação de cada vez que nos aproximávamos da Catumbela.
Na minha imaginação, a Catumbela fora sempre uma vila doce. De cada vez que ouvia a história dos irmãos Hansen e Gretel, não me assustava com a bruxa. Não ficava presa ao pormenor das migalhas de pão que eles deixavam cair no chão para assinalar a passagem pela floresta. Tudo no conto me passava ao lado, porque eu viajava directamente para a casinha de chocolate. E, para lá chegar, deixava-me guiar pela excitação das minhas marinas, exercitadas naquele cheiro adocicado a céu aberto. Fantasiava que a casinha teria que estar algures por aqueles lados. Só podia ser na Catumbela - um sítio mágico, onde das árvores pendiam folhas caramelizadas, das plantas floriam rebuçados coloridos e o rio, ali tão perto, se deixava arrastar num caudal de leite creme espelhado de açúcar queimado e crocante.
E tudo isto por causa da Cassequel, fábrica onde a cana era transformada em açúcar e depois transportado em grandes sacas de pano onde figuravam as letras da Companhia. O tecido das sacas era depois aproveitado para aventais e panos de cozinha. Na nossa casa, a palavra reciclagem começou a ser praticada muito antes de ser inventada, por mor de práticas que nos ensinavam a nada desperdiçar.
E nós corríamos para o comboio, de paus na mão, suficientemente compridos para encurtarem a distância que ia dos nossos curtos braços até aos vagões. E ficávamos ali postados a vê-lo deslizar sobre os carris, estudando a oportunidade de surripiar algum pedaço de cana que estivesse a espreitar para o lado do musseque. Claro que o meu irmão - nos seus tenros quatro anos - pouco mais fazia do que imitar-me. Dava pequenos saltos e investia com o pau, como quem espicaça um animal na ânsia de o ver aproximar-se.
Ainda hoje me interrogo como é que eu conseguia, mas recordo nitidamente que regressávamos a casa a chupar um pedaço de cana retirado do comboio. Podíamos obtê-la de outra maneira, mas não teria o mesmo significado nem o mesmo sabor - o gosto da vitória sobre uma aventura proibida, mas bem sucedida.Os meus pais nunca souberam o que nos fazia correr, assim que o comboio apitava do outro lado do rio. Talvez pensassem que nos movia uma mera curiosidade e nos quedássemos silenciosos a vê-lo passar.
Quando, muitos anos mais tarde, pisei o palco do Cinema Monumental para, integrada num grupo de jograis, dizer o "Trem de Alagoas" do brasileiro Ascenso Ferreira, não senti debaixo dos pés a madeira encerada do sobrado. Assim que uma colega começou: "O sino bate/ o condutor apita o apito/ solta o trem de ferro um grito,/ põe-se logo a caminhar...", eu estremeci por cima de dois carris do caminho de ferro de Benguela, deixei que a trepidação da linha se apoderasse do meu corpo e ganhei a velocidade do tempo.
Numa viagem de regresso ao passado, continuei pelas entranhas do poema, até me inebriar com o cheiro das estrofes "Cana-caiana/ cana-roxa/ cana-fita/cada qual a mais bonita/ todas boas de chupar..." e deixar o açúcar derreter-se na língua de areia onde estão gravadas as pegadas da minha infância.
Aida Baptista
Apontamentos anticancro 16
Todos os organismos vivos são naturalmente capazes de reparar os seus tecidos após uma lesão. Estes mecanismos são absolutamente essenciais à integridade do organismo. O nosso corpo submete-se sempre a este processo de reconstrução quando é agredido, o que é inevitável. Quando se encontram bem regulados e adaptados às outras funções das células, estes processos são perfeitamente harmoniosos e auto-limitativos. Isso significa que, uma vez executadas as substituições essenciais, o crescimento de novos tecidos pára. As células imunitárias activadas para lidar com os intrusos, regressam ao seu estado de vigilância, ou seja, ficam de plantão. Trata-se de um passo fundamental para evitar que as células imunitárias continuem o seu trabalho e ataquem tecido saudável. Recentemente, descobrimos que o cancro, tal como um cavalo de Tróia, explora este processo de reparação para invadir o organismo e levá-lo à destruição. São estas as duas faces da inflamação: se, por um lado, o seu objectivo é sarar ajudando a criar novo tecido, também pode desviar-se deste e favorecer o crescimento canceroso. Tal como as células imunitárias se preparam para reparar lesões, as células cancerosas precisam de produzir inflamação para sustentar o seu crescimento. Para isso dão início a uma produção abundante das mesmas substâncias altamente inflamatórias que são utilizadas na reparação natural das lesões. Actuam como fertilizantes químicos que favorecem a reprodução celular. Os tumores em crescimento utilizam estas substâncias para os ajudar a desenvolver-se e para tornar as barreiras circundantes mais permeáveis. O mesmo processo que permite ao sistema imunitário reparar lesões e perseguir inimigos onde quer que estejam é desviado em benefício das células cancerosas. Estas exploram-no para se alastrarem e se reproduzirem. Graças à inflamação que criam, infiltram-se em tecidos vizinhos, penetram na corrente sanguínea, migram e estabelecem colónias remotas denominadas metástases».
Do livro «Anticancro – um novo estilo de vida» de David Servan-Schreiber.
Era muito pequena - oito anos franzinos, mas um ouvido bem treinado e atento aos barulhos que durante o dia rasgavam os céus da sanzala. Aquele tu ... tu... tu.u.u.u.. prolongado - um silvo inconfundível ao cair da tarde - anunciava a chegada do comboio da cana à margem norte do rio Cavaco. A partir dali a marcha abrandava porque o rio demarcava a linha de entrada no coração da cidade.
O eco do último "tu..." era o tiro de partida para a correria que, em período de férias, nos levaria (a mim e ao meu irmão) até junto da linha férrea. Primeiro, o fumo a romper por entre as acácias coloridas; depois, o corpo inteiro da lagarta, a estremecer os espaços onde se apoiavam os ganchos que separavam os vagões carregados de troncos de cana de açúcar.
Víamo-los negros, muito escuros, queimados. Nunca fiz perguntas. Acho que naquela época, entretida a viver a minha curta infância, não precisava de respostas. Não me interessava saber a razão por que faziam queimadas nas plantações da cana. Bastava-me aquele cheiro forte do açúcar em fermentação de cada vez que nos aproximávamos da Catumbela.
Na minha imaginação, a Catumbela fora sempre uma vila doce. De cada vez que ouvia a história dos irmãos Hansen e Gretel, não me assustava com a bruxa. Não ficava presa ao pormenor das migalhas de pão que eles deixavam cair no chão para assinalar a passagem pela floresta. Tudo no conto me passava ao lado, porque eu viajava directamente para a casinha de chocolate. E, para lá chegar, deixava-me guiar pela excitação das minhas marinas, exercitadas naquele cheiro adocicado a céu aberto. Fantasiava que a casinha teria que estar algures por aqueles lados. Só podia ser na Catumbela - um sítio mágico, onde das árvores pendiam folhas caramelizadas, das plantas floriam rebuçados coloridos e o rio, ali tão perto, se deixava arrastar num caudal de leite creme espelhado de açúcar queimado e crocante.
E tudo isto por causa da Cassequel, fábrica onde a cana era transformada em açúcar e depois transportado em grandes sacas de pano onde figuravam as letras da Companhia. O tecido das sacas era depois aproveitado para aventais e panos de cozinha. Na nossa casa, a palavra reciclagem começou a ser praticada muito antes de ser inventada, por mor de práticas que nos ensinavam a nada desperdiçar.
E nós corríamos para o comboio, de paus na mão, suficientemente compridos para encurtarem a distância que ia dos nossos curtos braços até aos vagões. E ficávamos ali postados a vê-lo deslizar sobre os carris, estudando a oportunidade de surripiar algum pedaço de cana que estivesse a espreitar para o lado do musseque. Claro que o meu irmão - nos seus tenros quatro anos - pouco mais fazia do que imitar-me. Dava pequenos saltos e investia com o pau, como quem espicaça um animal na ânsia de o ver aproximar-se.
Ainda hoje me interrogo como é que eu conseguia, mas recordo nitidamente que regressávamos a casa a chupar um pedaço de cana retirado do comboio. Podíamos obtê-la de outra maneira, mas não teria o mesmo significado nem o mesmo sabor - o gosto da vitória sobre uma aventura proibida, mas bem sucedida.Os meus pais nunca souberam o que nos fazia correr, assim que o comboio apitava do outro lado do rio. Talvez pensassem que nos movia uma mera curiosidade e nos quedássemos silenciosos a vê-lo passar.
Quando, muitos anos mais tarde, pisei o palco do Cinema Monumental para, integrada num grupo de jograis, dizer o "Trem de Alagoas" do brasileiro Ascenso Ferreira, não senti debaixo dos pés a madeira encerada do sobrado. Assim que uma colega começou: "O sino bate/ o condutor apita o apito/ solta o trem de ferro um grito,/ põe-se logo a caminhar...", eu estremeci por cima de dois carris do caminho de ferro de Benguela, deixei que a trepidação da linha se apoderasse do meu corpo e ganhei a velocidade do tempo.
Numa viagem de regresso ao passado, continuei pelas entranhas do poema, até me inebriar com o cheiro das estrofes "Cana-caiana/ cana-roxa/ cana-fita/cada qual a mais bonita/ todas boas de chupar..." e deixar o açúcar derreter-se na língua de areia onde estão gravadas as pegadas da minha infância.
Aida Baptista
Apontamentos anticancro 16
Todos os organismos vivos são naturalmente capazes de reparar os seus tecidos após uma lesão. Estes mecanismos são absolutamente essenciais à integridade do organismo. O nosso corpo submete-se sempre a este processo de reconstrução quando é agredido, o que é inevitável. Quando se encontram bem regulados e adaptados às outras funções das células, estes processos são perfeitamente harmoniosos e auto-limitativos. Isso significa que, uma vez executadas as substituições essenciais, o crescimento de novos tecidos pára. As células imunitárias activadas para lidar com os intrusos, regressam ao seu estado de vigilância, ou seja, ficam de plantão. Trata-se de um passo fundamental para evitar que as células imunitárias continuem o seu trabalho e ataquem tecido saudável. Recentemente, descobrimos que o cancro, tal como um cavalo de Tróia, explora este processo de reparação para invadir o organismo e levá-lo à destruição. São estas as duas faces da inflamação: se, por um lado, o seu objectivo é sarar ajudando a criar novo tecido, também pode desviar-se deste e favorecer o crescimento canceroso. Tal como as células imunitárias se preparam para reparar lesões, as células cancerosas precisam de produzir inflamação para sustentar o seu crescimento. Para isso dão início a uma produção abundante das mesmas substâncias altamente inflamatórias que são utilizadas na reparação natural das lesões. Actuam como fertilizantes químicos que favorecem a reprodução celular. Os tumores em crescimento utilizam estas substâncias para os ajudar a desenvolver-se e para tornar as barreiras circundantes mais permeáveis. O mesmo processo que permite ao sistema imunitário reparar lesões e perseguir inimigos onde quer que estejam é desviado em benefício das células cancerosas. Estas exploram-no para se alastrarem e se reproduzirem. Graças à inflamação que criam, infiltram-se em tecidos vizinhos, penetram na corrente sanguínea, migram e estabelecem colónias remotas denominadas metástases».
Do livro «Anticancro – um novo estilo de vida» de David Servan-Schreiber.
4 Comentários:
Às 13 de junho de 2010 às 23:04 , Kim disse...
O fruto proibido é sempre o mais apetecido. O afastamento das grandes urbes proporciona a descoberta de novos passatempos e as crianças são férteis na sua descoberta.
Bj
Às 13 de junho de 2010 às 23:16 , Osvaldo disse...
Cara Aida;
Quantas imagens gravadas na mente nos levam de volta a lugares, cores e cheiros da nossa infância.
Para mim, talvez nem tenha sido o comboio que via regularmente quando ia com meu pai à Régua ou ao Pinhão. Talvez nem tenham sido as matas e serras tão comuns na nossa terra. Nem mesmo a escola e colegas de carteira.
Porém há uma imagem que me encanta sempre que por lá passo, que é fechar os olhos e apreciar o nosso Douro d'outrora com seus barcos rabelos a deslizar nas suas águas com as pipas que levariam o tão nosso Fino e Generoso Vinho para o Mundo.
Carlos Paião
Vinho Do Porto - Letra
Primeiro a serra semeada terra a terra
Nas vertentes da promessa
Nas vertentes da promessa
Depois o verde que se ganha ou que se perde
Quando a chuva cai depressa
Quando a chuva cai depressa
E nasce o fruto quantas vezes diminuto
Como as uvas da alegria
Como as uvas da alegria
E na vindima vão as cestas até cima
Com o pão de cada dia
Com o pão de cada dia
Suor do rosto pra pisar e ver o mosto
Nos lagares do bom caminho
Nos lagares do bom caminho
Assim cuidado faz-se o sonho e fermentado
Generoso como o vinho
Generoso como o vinho
E pelo rio vai dourado o nosso brio
Nos rabelos duma vida
Nos rabelos duma vida
E para o mundo vão garrafas cá do fundo
De uma gente envaidecida
De uma gente envaidecida
Vinho do Porto
Vinho de Portugal
E vai à nossa
À nossa beira mar
À beira Porto
À vinho Porto mar
Há-de haver Porto
Para o nosso mar
Vinho do Porto
Vinho de Portugal
E vai à nossa
À nossa beira mar
À beira Porto
À vinho Porto mar
Há-de haver Porto
Para o desconforto
Para o que anda torto
Neste navegar
Por isso há festa não há gente como esta
Quando a vida nos empresta uns foguetes de ilusão
Vem a fanfarra e os míudos, a algazarra
Vai-se o povo que se agarra pra passar a procissão
E são atletas, corredores de bicicletas
E palavras indiscretas na boca de algum rapaz
E as barracas mais os cortes nas casacas
Os conjuntos, as ressacas e outro brinde que se faz
Vinho do Porto vou servi-lo neste cálice
Alicerce da amizade em Portugal
É o conforto de um amor tomado aos tragos
Que trazemos por vontade em Portugal
Se nós quisermos entornar a pequenez
Se nós soubermos ser amigos desta vez
Não há champanhe que nos ganhe
Nem ninguém que nos apanhe
Porque o vinho é português
bjs,
Osvaldo
Às 14 de junho de 2010 às 14:38 , Maria disse...
Aida
Quando a lembrança bate no nosso coração, há duas sensações: A saudade e a alegria de ter vivido momentos únicos. É bom lembrar e eu gosto de ver as lembranças dos outros.
Gosto da sua maneira de escrever.
Abreijo
Maria
Às 15 de junho de 2010 às 13:49 , Anónimo disse...
Olá Aída, costumo ouvir os meus cunhados falar disso, pois eles trabalhavam nos caminhos de ferro de Benguela, e quando eram miudos e ouviam o apito da locomotiva, ah, corriam por ali fora para acenar aos motoristas, e anos mais tarde eram eles que esperavam que os miudos que moravam por ali, viessem esperá-los ou só vê-los a passar...eles falam tanto nisso.. e na alegria de viajar assim pelas terras quentes...
Bonita prosa plena de recordações das canas d'açúcar que eu tinha em Luanda da Fazenda tentativa, ia lá com o pai, ah, que bom.. Beijinho da laura
Moa, agora sou anónima o meu blogue já não me deixa aceder a tudo, troca o gmail e pronto..Um xi.. laura
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