AOS SETENTA só SESSENTA DE POESIA 2



AOS SETENTA SÓ SESSENTA DE POESIA (CONTINUAÇÃO)
Claro que, a fazer finca-pé na memória de minha mãe, que só da sua memória me vêm tais ecos, ainda poderia recuar um pouco mais no tempo para perscrutar as primeiras manifestações ‘poéticas’ cá do artista, então artista de palmo e meio. Teria eu dois, três anos (disto não guardo a mais ténue reminiscência, falo, pois, exclusivamente baseado nos relatos maternais, confirmados por pai, madrinha, avô, tios, vizinhos, tudo gente mais velha e de respeito) e já era o animador mor nas noites cálidas de Verão do ajuntamento na rua dos vizinhos a pedir à noite uma suave brisa que servisse de refrigério àqueles corpos ressequidos pela canícula impiedosa de doze e mais horas à torreira do sol, cantando, para gáudio e agrado de todos, as canções do São João que facilmente aprendia e trauteava com desenvoltura, tentando transcrever textualmente o que me foi transmitido ao longo da infância e juventude. Quando na reunião familiar de consoada em casa dos meus avós paternos com essa mesma idade eu fazia de uma frita concertina, convidando todos a cantar comigo e dava por alguém que parasse de cantar, logo os interpelando: canta pai, canta mãe, canta avó, não estaria já a demonstrar os meus dons de trovador? Por certo que sim. E se registo houvesse destas primeiras façanhas, os setenta de idade quase que se confundiam com outros tantos anos de poesia. Mas vou mais longe. Minha mãe, pelos relatos que fui colhendo ao longo da vida, era uma moçoila sadia, folgazona, danada para a folia, para o bailarico e para a cantoria. Ainda não tinha feito os vinte quando me deitou ao mundo, por certo a toque de caixa e logo embalado pela sua melodiosa voz. Tão bem cantava e improvisava ela, sempre que a letra original da canção lhe escapava! Com estes antecedentes todos, fosse por força hereditária, fosse por inconsciente retenção dos acordes ouvidos, fixados e quiçá com eles fazendo coro ainda no quente e jovem ventre materno, não me custa aceitar que trovador me tornei ainda antes de nascer, trovador desde o primeiro instante de vida, trovador cresci, a trovar vivi e, já agora, a trovar desejo morrer, em beleza, reconfortado e ungido pela poesia. E, se possível, daqui a muitos e bons anos, só quando já mais não puder viver. Mas ainda será cedo para falar do futuro e tarde para falar do passado de que não tenho memória. Falarei, por isso, apenas destes sessenta anos de poesia de que guardo memória e registo.
Aqui vai a primeira manifestação poética deste não direi nem grande nem pequeno poeta, mas sim deste amante e cultor, pelo menos há sessenta anos, desta minha antiga e apaixonante companheira a que ouso, convictamente ouso, apelidar de poesia.
TENTAÇÃO
Eu fiz coisas de uma vez
Ou coisas que o demo fez
Em cair na tentação
De roubar cinco tostões
E disse para os meus botões:
Olha que foste ladrão!
Eu caí na esparrela
De saltar pela janela
Para a minha mãe não me ver
Mas deixei rastos na sala
Ficou meia aberta a mala
Tudo se veio a saber.
Os amigos me esperavam
E nem sequer se cansavam
De me empurrar para ir
De rebuçados comprar
O que há pouco fui roubar
E das mãos queria sair.
E lá vou, malgrado meu,
Pois minha mãe me bateu
Logo que a casa cheguei.
Já me tinha descoberto
Vendo o cofrezinho aberto
Que com pressa nem fechei.
Com o ar de fanfarrões
Entrámos com os cinco tostões
Já na mão vão a ferver
Perto da banca da loja:
- Dê-me rebuçados ‘Foja’,
Avie-se, quero comer.
Calhou dois a cada um
E não me ficou nenhum
Para comer em outra hora.
Pedi então aos amigos:
- Agora comprem os figos.
Mas eles… foram-se embora.
Dezembro de 1949
Quem tiver, como eu, alguma relutância em tomar esta peça como um poema, atente nos seus pormenores poéticos. Poéticos e pessoanos.
«O poeta é um fingidor», proclamou Fernando Pessoa. Reparem como eu, aos dez anos, já sabia fingir tão bem: o furto não foi de cinco, mas sim de vinte e cinco tostões. Acontece que o valor real ultrapassava as sete sílabas. De que se lembrou o embrião? Reduzir o valor, pois então! E assim se perdeu a alma, mas salvou-se a métrica. Para além de fingidor, manifesto-me aqui já como um grande inventor, senhor de grande poder imaginativo. Com efeito, o furto foi singelo, rápido e nada acrobático. Os vinte e cinco tostões encontrei-os eu sobre o aparador da cozinha, onde minha mãe os tinha deixado conscientemente e não por esquecimento como o tentador me sugeriu para me aliciar a pecar. E qual salto pela janela, qual quê! Saí pela porta, nas calmas. Que a minha mãe me bateu logo que a casa cheguei, lá isso, foi certo. E essa da sala e da mala e do cofrezinho é tudo pura invenção de uma imaginação precocemente delirante. E o resto também. Realmente real só o furto e a tareia mestra para que me ficasse de emenda. E ficou. Nunca mais roubei nada a ninguém. Bem pelo contrário. Toda a vida fui um perdulário, um otário, um anjolas nãos mãos dos vígaros. Aliás, como qualquer poeta, como qualquer sonhador que se preze.