SEJAM MUITO BEM VINDOS A ESTE BLOG!--------ENA!-- TANTOS LEITORES DO MEU BLOG QUASE DIÁRIO! ---ESTA FOTO É UMA VISTA AÉREA DA MINHA TERRA,-TABUAÇO! UM ABRAÇO PARA CADA UM DE VÓS! -ANDRÉ MOA-

DIÁRIO DE UM PACIENTE II

quarta-feira, 31 de março de 2010

CICLO PAIXÃO



O PENEDO DO MOCHO
O dia rompera cinzento e frio, naquele mês de Dezembro. O Chico da Cotovia acordara cedo, como era seu hábito e já há muito que abandonara o leito. À claridade frouxa da luz da candeia de azeite pendurada num pequeno pau fixo à parede de xisto do casebre, retirou do «lume» o pote de ferro de três pés onde repousava o caldo de legumes feito de véspera. Preparou-se para «matar o bicho», num ritual que se repetia todos os dias. Encheu de caldo uma velha tigela de grandes proporções e «adubou» o ingrediente com uma grossa fatia de presunto. Puxando do bolso de traz das calças de cotim a sua inseparável navalha de «ponta e mola», começou a cortar fatias de pão de centeio duro, que lançou na malga, para tornar o caldo mais consistente. Enquanto se alimentava, ia pensando: - Não há dúvida! Com o frio que está, vai ser um bom dia de caça. O Chico vivia da caça e da pesca, que vendia com algum proveito. Considerava-se um profissional. Espreitando pelo postigo do casebre verificou, com satisfação, que uma forte geada cobria os campos e um espesso nevoeiro vindo do rio, escondia o horizonte. As condições atmosféricas não o preocupavam. Sentia-se favorecido pois, a coberto do nevoeiro, poderia aproximar-se das presas que pretendia abater. Não havia risco de se perder pois, ninguém como ele, conhecia aqueles montes e vales. Desde criança que calcorreava aqueles sítios a pastorear o rebanho de seu pai. Agora já não há rebanhos por escassearem os pastos e o negócio já não render. Confortado com a tigela de caldo quente, preparou-se para a expedição venatória. Calçou as botas de pneu de cano alto e, por cima da grossa camisola de lã já muito gasta, vestiu a samarra de gola de pele de raposa que comprara no ano anterior na feira de Moimenta. Antes de partir, e por medida preventiva, colocou à cintura, uma pequena cabaça contendo alguma aguardente de boa cepa para aquecer o ânimo. Com a «espanhola» ao ombro, parte esperançado num proveitoso dia de caça.
Após duas horas extenuantes de caminhar sem parar, num sobe e desce constante, senta-se para descansar num pequeno muro divisório meio derrubado. Enquanto bebe um trago de aguardente, põe-se a reflectir: - É estranho! Não consegui aperceber-me de qualquer movimento ou ruído. Nem o piar e o esvoaçar de uma ave. Reina um silêncio invulgar. Nem as folhas das árvores se mexem. Este maldito nevoeiro está cada vez mais denso. Como se fosse um manto invisível que pousa nos nossos ombros e nos deprime e sufoca. Cada vez se vê menos. Até parece que o tempo parou e tudo está morto. Nunca tal vi! Por momentos o Chico sente um arrepio pela espinha acima e os cabelos do cachaço ficarem hirtos como a tropa em sentido. - Mas que é isto?! - pensa para consigo. Até parece que estou com medo. - Qual quê! - murmura para se animar. - Se não tenho medo de nada! Até estou armado! - E bate com a mão na coronha da espingarda como a tranquilizar-se. De súbito, o seu fino ouvido percebe um gargalhar longínquo de mistura com sons musicais indefinidos. Movido pela curiosidade, levanta-se e de arma engatilhada penetra cauteloso no nevoeiro. Vai avançando lentamente e pisando o terreno com cuidado. Aproximando-se do ruído insólito, apercebe-se que as gargalhadas são de mulheres. O facto anima-o a continuar. É um bando de «andorinhas» que se diverte, conclui aliviado. Nota, contudo, que pisa terreno desconhecido. Não reconhece os velhos trilhos. Sente-se perdido, confuso e inquieto. O gargalhar musical ora está longe ou perto, atrás ou à frente. Tomado de pânico, salta valados, escala muros e corre, corre em desatino. Perde a espingarda pelo caminho. De repente, sente-se como suspenso no espaço e só tem tempo para se agarrar, com desespero, ao tronco de uma velha oliveira. Como por encanto, o nevoeiro desaparece subitamente e vê nitidamente à sua volta. Reconhece, com assombro, o local. Encontra-se no alto do desfiladeiro do atalho, sobranceiro ao rio. Um passo mais em frente e seria a queda no abismo. Ao fundo, o rio curva para a direita contornando o penhasco e as suas águas alargam-se. Uma língua de areia forma uma espécie de praia. No leito do rio, como uma ilha, ergue-se um grande maciço rochoso, o penedo do mocho.
Paralisado de espanto, o Chico contempla um espectáculo singular. No areal, um bando de mulheres jovens, mal vestidas de negro, descalças e semi-nuas, dançam com frenesim um ritmo alucinante e sincopado. Gesticulantes e aos gritos inumanos as dançarinas, desgrenhadas, desafiam o Chico a entrar na roda, proferindo obscenidades e exibindo, desavergonhadamente, as suas intimidades. É então que o Chico, ao desviar o seu olhar, descobre o tocador de flauta no cimo do penedo do mocho. Mas que tipo estranho aquele! Só com um amplo barrete vermelho a esconder-lhe a cabeça, bamboleia o seu corpo nu, alto e branco como a cal da parede, ao ritmo da música e bate, com violência, os pés na rocha, como a marcar o compasso. Os pés?! O Chico repara, aterrorizado, que o músico não tem pés. Fita o Chico com o seu olhar sanguíneo e com voz de trovão, intimida: ó Chico vem nadar! Trémulo, o Cotovia reconhece estar em presença do diabo. Persigna-se, convulsivamente, e reza a oração dos aflitos. Então tudo se transforma. O dia fez-se noite. À sua volta tudo treme e relampeja. Ouve o bater de asas gigantes e apercebe-se de monstros voadores em seu redor. Sente-se leve e arrebatado pelo espaço e perde a noção da realidade.
O Hipólito da Fonte, que andava à azeitona, nota no areal, meio submerso, um corpo dir-se-ia dum afogado. Movido pela curiosidade, atravessa a ponte do Vau e dirige-se apressado ao corpo caído. Reconhece, com espanto, o Chico da Cotovia com o cabelo chamuscado e sem sobrancelhas. Sem se conter exclama: - Ó Chico que estás aqui a fazer?! Caíste à lareira com a bebedeira?! A gaguejar, o Chico consegue balbuciar com esforço: - não estou bêbado! Encontrei foi o diabo...em pessoa! -. E desmaiou.
Paixão Lima

segunda-feira, 29 de março de 2010

UMA VIDA EM VERSOS

Um maestro falhado e a sua banda de palmo e meio

AOS SETENTA SÓ SESSENTA DE POESIA – 9

ANTOLOGIA DE UM DESCONHECIDO

(edição do autor – colecção Degrau 2)

1973

CANTATA DA PAZ EM DÓ MENOR
(CONTINUAÇÃO)


10.º andamento – “allegro con fuoco”
“mezzo forte”

se os pássaros fossem burgueses,
que de música?

os pássaros são operários
são do povo
os pássaros cantam

se as flores fossem
pertença exclusiva dos solares,
que de beleza?

as flores entram e sorriem
na casa de toda a gente
mesmo nos casebres mais pobres…
vale a pena cultivá-las

*****
11.º andamento – “poco mosso”

Caim… Caim… Caim…
SÉCULO XX

não nasceu de adão:
a mãe não gosta de maçãs

vomita sem lamento
ódio esterilizado

afoga-se em pensamentos
de liquidação

ninguém lhe conheceu ama
nem sabe como se chama

abel não é:
nunca bebeu leite de ovelha
que é puro
é leite virgem
e sabe a primavera

*****
12.º andamento – “allegro ma non tropo”
“forte”

ALJUBRE

cantou nos bosques
construiu ninhos
sonhou mares
rasgou céus
o pássaro dorido na gaiola

a terra toda céus e mares
já foram seus

agora dão-lhe gotas de água
por esmola

13.º andamento – “presto”

CARTA TESTAMENTO

da cela do medo
amor
escrevo
amor
te escrevo
ainda vivo

por baixo deste corpo dolorido
ainda canto
ainda grito
exangue entoo
em silêncio penso
proclamo
e digo
JUSTIÇA
LIBERDADE
PAZ
……………………….
recebe e dá
beijos meus
abraços destes
ao nosso rapaz

só assim poderei morrer
em paz


14.º andamento – “prestíssimo”

CHAMPAGNE PARA A MESA DA FOME

champagne para a mesa do lado
a mesa dois terços
a mesa do canto
a mesa do chão
a mesa do cantochão da fome

champagne em forma de pão
…………………………………
sai ou não?

sábado, 27 de março de 2010

CICLO REFLEXÃO

O MISTÉRIO E A VERDADE
1.ª pintura de Luís Tiago - quatro anos
Por sugestão do Paixão Lima, logo abraçada pelo Ernesto Leandro e por mim, vamos abrir aqui mais uma frente de troca de ideias que começará por se denominar – CICLO REFLEXÃO. Sem se fechar nenhum dos ciclos já lançados, ao ritmo de valsa, iremos reflectir, discutir, aprofundar, terçar armas sobre um assunto proposto por quem quer que seja, muito em especial pelo Paixão Lima, que foi o da ideia e já propôs dois temas: o que se segue e um outro que já está em carteira.
Ficam todos convidados para, com abertura de espírito, frontalidade, tolerância, franqueza, sinceridade, poder de encaixe e lhaneza, nos juntarmos à volta da lareira do Cantinho do Poeta (espaço reservado a comentários) e aí pormos os neurónios (os nossos e os dos outros) a funcionar.
Para começar, o António Paixão Lima, propõe-nos um enredado texto do Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, que, adverte, «encerra um pensamento e uma forma de estar na vida. É um texto polémico, e isso é bom, pois no unanimismo não há democracia». Paixão o disse e nós aplaudimos. Mesmo quando eventualmente não estivermos de acordo.
André Moa

VERDADES, MENTIRAS, ERROS, ILUSÕES...

«Não, não, isso não! Tudo menos saber o que é o Mistério! Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas, Não vos ergais nunca! O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se! Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada! A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo. Deve trazer uma loucura maior do que os espaços. Entre as almas e entre as estrelas. Não, não, a verdade não!»
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa

O MISTÉRIO E A VERDADE
Isso sim, Senhor Álvaro de Campos. Tudo saber. Não desistir, não deixar nunca de aprofundar, até que o mistério se desvende, assome à superfície do universo, de pálpebras bem erguidas, com a galhardia e coragem de enfrentar o olhar da verdade final e suportá-la. Deixai-me viver na ânsia de tudo saber, de tudo perceber, até vir a morrer, se possível, sem disso me aperceber, sem arrefecer minimamente o desejo de viver. A razão de haver ser, de haver seres, de haver tudo reside no próprio se, nos próprios seres, está no tudo. O meu trabalho está no tentar abrir tudo e perceber de tudo a razão de ser. Sem pressas nem invenções precipitadas. Eu não quero inventar nada para nada; sim descobrir, em verdade e com verdade, tudo e perceber tudo o que está em tudo. Sim, à verdade sim. Só a verdade é lúcida. Só a verdade. Toda a verdade.
André Moa

quinta-feira, 25 de março de 2010

CICLO EMOÇÃO


Ernesto Leandro - teenager
PROSA POÉTICA

( Para uma grande mulher que já partiu para sempre
e que eu memorizo todos os dias. Foi e é ainda para
mim a segunda maior mulher do mundo e só porque
a primeira é minha Mãe.)

A miséria no sentido etimológico da palavra e a mental em muitos outros, materialmente ricos, causam no poeta um langor entrópico que o remete para longas lucubrações causadoras dos motes que, depois da levedura, são o fio condutor dos seus poemas.
Há bastante tempo que não penso na miséria que sou; de tanto falares naquilo a que chamas " a minha riqueza de espírito", eu, meu Amor, quase que estou convencido (que insuportável vaidade a minha) que sou um poeta; também, que a minha coerência na forma de estar e agir, como dizes ainda, é garantia de estabilidade no nosso amor; repara na contradição deste teu louvaminhar (que é sentido porque dito por ti) com a irreverência, a inquietude, a angústia, a impaciência, a errância que marcaram, de um modo indelével, a minha vida...

O teu amor, o meu amor fizeram o milagre deste apaziguamento íntimo; mas não tenho dúvidas da sua transitoriedade, porque, infelizmente para mim, vai chegar o dia em que o teu cansaço, por tanto desprezo meu pela realidade, te levará à fuga de uma morte precoce.
Para já, o teu corpo e o meu corpo a exsudarem na cama em que nos juntamos quando nos possuímos, numa entrega arrebatadora e brutal, vão adiando esse fim inexorável. Não cries falsas expectativas, meu Amor; não convivo com a mentira, é certo, mas o poeta, vítima duma intermitente auto-punição, denega uma felicidade que tem à mão, sonhando uma hipotética outra adveniente daquilo que ainda não possui.
Guardo na memória, como relíquia em baú, todas as mulheres que conheci e me amaram; também as amei com o arroubamento que conheces... E a ti, minha quinta-essência, continuarei a dar-te tudo, o físico e o espiritual, até quando for possível manter o poeta um pouco adormentado e esquecido da (como eu gostaria que assim fosse, acredita) da infinitude do nosso amor; ao avisar-te dos perigos que corres, só possíveis pelo fatalismo que o poeta arrasta consigo e o consome, com a nobreza de carácter que é meu apanágio, obrigo-me a ser delator de mim próprio; se o não fizesse, não estaria a ser digno de ti.
Como admiro a tua coragem e " temeridade"! Parafraseando um poeta, " a brincares com punhais sem te picares!

ERNESTO LEANDRO

quarta-feira, 24 de março de 2010

LUÍS TIAGO - QUARTO ANIVERSÁRIO

Luís Tiago com a mamã, às oito da manhã Na escolinha às 16,30 a merendar com os amigos


QUERIDO NETO, para que conste e tu possas vir a sabê-lo, aqui fica escrito que, no dia em que nasceste, passei os olhos pelos jornais, a ver se traziam a grande notícia. Nem uma palavra sobre o maior acontecimento de todos os tempos, sobre o teu despertar para a vida. Todos se limitaram a realçar as desgraças do costume, as tragédias que eles avolumam para venderem mais, as inventonas e intentonas de sempre, as cabalas congeminadas contra quem procura cumprir o seu dever com coragem e denodo, tudo isso que é nada; e nem uma palavrinha a anunciar a boa nova do dia. Eu, que já não embarcava nas patacoadas, já não ia muito nas conversas de chacha de tais pasquins, cortei definitivamente com o mau vício que adquiri, ainda jovem, de ler um a dois jornais, de fio a pavio, todos os dias do ano, chovesse ou fizesse sol, fosse dia de trabalho ou de lazer. Nunca mais. Ler jornais para quê? Para ler as palermices que eles, os dos jornais, nos queiram impingir e não encontrar neles nem uma informação séria e honesta sobre o que acontece de importante e a gente quer ver repercutido nos chamados meios de comunicação social? Não estou interessado. Estou interessado, sim, em ver-te crescer em saúde e sabedoria, em inteligência e bondade. Interessa-me, sim, que sejas feliz e tudo faças para que todos os que te rodeiam beneficiem da tua presença e do teu indispensável contributo para o bem-estar de todos.
É isto, que, neste teu quarto aniversário, muito sumariamente, aqui recordo e registo para que neste desabafo encontres mais uma prova insofismável do quanto te amo, meu querido neto.


Não há nada neste mundo
nenhum amor mais profundo
do que o amor por um neto.
Um neto é uma candeia
que ilumina, incendeia,
uma casa até ao tecto.
Quanto mais ele nos borra
mais nós ganhamos amor;
nem a maior cachaporra
vindo dele nos causa dor.

Guincho de neto é canção
que nos enche o coração
de uma enorme alegria;
cócó de neto é odor
com mais requinte e valor
que o de uma perfumaria.
E não ousem afirmar
que é defeito do nariz,
que eu dou-vos a cheirar
uma fralda do petiz.

Um netinho é um presente
que satisfaz toda a gente
e deixa um homem babado.
Seja poeta ou livreiro
professor ou jardineiro
ainda que seja borrado
quando pega nele ao colo
ou lhe dá o biberão.
Neto é vida, é consolo,
que nos enche o coração.

A quem custe acreditar
não demore a experimentar
se isto é ou não verdade
Não basta apenas julgá-lo.
O melhor é experimentá-lo
com amor e com vontade.
Não há prenda como esta
que nos encanta a valer.
Que alegria, que festa
ver um netinho crescer!

André Moa

segunda-feira, 22 de março de 2010

CICLO PAIXÃO

Vista parcial de Tabuaço- como pano de fundo, a mata da D. Aninhas

GUERRA NA MATA DA DONA ANINHAS
Foi em Angola que se iniciou o movimento de libertação dos povos africanos do colonialismo português. Os relatos emitidos pela Emissora Nacional e pelo Rádio Clube Português sobre as barbaridades cometidas pela U.P.A. contra a população branca, constituiu um choque para as populações. Os jornais de então, que em grandes parangonas, exibiam fotografias arrepiantes de mulheres brancas violadas, de cabeças cortadas em exibição e de órgãos sexuais espetados em estacas, contribuíram para o clima generalizado de desconfiança e medo. Com esta terapia de choque, o regime político de então, pretendia justificar o injustificável, isto é, uma intervenção militar em larga escala, dando assim início a uma guerra sem fim e sem esperança. O impacto que estas notícias tiveram no interior do país, nomeadamente nos meios pequenos mais isolados e menos informados, foi devastador e de uma dimensão de tragédia e insegurança, nunca vistos.
Na terra da minha infância e sem se saber porquê, correu o boato da existência de um nicho de terroristas na mata da Dona Aninhas. Os sinos da igreja tocaram a rebate a convocar o povo ao combate. Reuniu-se o povoléu em alvoroço. Os mais afoitos, entre os quais modestamente me incluí, trataram de organizar e armar, com as armas possíveis, uma espécie de pelotão para patrulhar a respectiva mata.
Sem saber como, encontrei-me com uma pistola Mauser nas mãos, pesada e ferrugenta. Possivelmente, sobras da primeira grande guerra. Se estava carregada ou não, ainda hoje não sei. Na altura não me pareceu importante. A arma era, por si só, intimidatória e transmitia-me uma sensação de segurança e invencibilidade. Eu era um adolescente que não tinha medo. Para ter medo, é preciso pensar e eu era mais do tipo de agir primeiro e pensar depois. A juventude nunca pensa que pode morrer.
Como estava a cair a noite, o Francisco da garagem sugeriu, sabiamente, transportar na sua caminheta Fargo um holofote que possuía, para varrer com a sua luz ofuscante a mata a partir da estrada da serra. De forma mais ou menos organizada, lá partimos, em passo decidido em direcção ao objectivo. Não éramos mais de vinte efectivos, como se diz na tropa. Mas marchámos confiantes, sob o olhar comovido dos mais idosos que nos recomendavam cautela, olho vivo e pé ligeiro. A juventude, especialmente a feminina, observa os «combatentes» com orgulho, admiração e medo.
- António! Volta para mim, amor! - diz ela com voz trémula. - Claro que volto, rapariga. Mas primeiro o dever. Está descansada que logo falaremos - digo de forma sacudida para desvalorizar o momento de grande intensidade dramática.
Passámos a noite a jogar às escondidas uns com os outros. Progredindo no terreno, ao mínimo ruído suspeito disparavam as caçadeiras. Não morreu ninguém de forma acidental, por mero acaso. Como não se pode encontrar o que não existe, a tropa regressa ao quartel, isto é, a casa, já o dia rompia. Qual não é o nosso espanto ao depararmos com uma multidão a aguardar, ansiosa e inquieta, o nosso regresso. Soam aplausos, agitam-se braços no ar em sinal de contentamento. De súbito, sinto-me abraçado com ímpeto. Por pouco não caio de cansado. Desfeita em lágrimas e a soluçar, encosta a sua cabeça ao meu peito de forma terna como só as mulheres sabem fazer. Explica-me, comovida, que passaram a noite a rezar pelo nosso regresso. Ninguém arredou pé. Então pergunta-me curiosa: - Mataram os terroristas? A pergunta embaraçou-me - Já não há terroristas! Digo. - Graças a Deus! - suspira ela aliviada. E apertando-me em seus braços murmura suavemente aos meus ouvidos: - Quantos mataste? - Mentindo descaradamente e com falsa modéstia, declaro solenemente: Não os contei. Talvez uns três ou quatro! - Ó meu herói! - declara ela em voz alta e envolvendo-me em seus braços, beija-me apaixonadamente.
Paixão Lima

domingo, 21 de março de 2010

Acabo de receber do Ernesto Leandro este poema. Porque hoje se comemora neste primeiro dia da Primavera a Poesia e a Árvore, talvez nada melhor do que os dois poetas de serviço neste blogue dedicarem um poema a todos os esteios, a todas árvores, a todos os zângãos, a todas as flores que nos visitam e connosco partilham o pão da vida
André Moa

FELICIDADE FUGAZ

Como te amo!
Perguntas-me,
Crente da minha verdade:
Se longe de ti, onde está
A felicidade?
No absoluto, em lado nenhum.
Relativizando, cada um
pode, fugazmente encontrá-la

Na magia dum amor;
Num jardim em flor:
No sorriso duma criança;
No perpetuar da esperança;
Na desculpa ao ofendido;
No perdão ao arrependido;
No óbolo ao mendigo;
No alerta ao perigo;
Num beijo dado a quem morre;
Num lenço dado a quem chore;
Na dignidade no sofrimento;
No calar dum lamento;
No silêncio na dor;
No dar a mão ao pecador;
Na alegria por quem nasce;
Na euforia que não mace;
Na parcimónia no prazer;
No arrebol do anoitecer;
No perdulário com quem precisa
Que dá e não avisa;
No que é rico na pobreza
Sem invejar a riqueza;
No riso de quem chora
A toda a hora;
No aplauso à nobreza
Da compreensão genuina,
Na procura da beleza
Pelo artista em surdina;
No que suporta a demora
Quando merecia o mais cedo,
No que não sente o medo,
No que se emociona e chora;
No que faz jus à amizade;
No que resiste à saudade;
No que acredita na justiça
Sofrendo na injustiça;
No que se esquece de si
Para se lembrar de ti!

Ernesto Leandro

O RENASCER EM MIM DA PRIMAVERA
(no dia da poesia – no dia da árvore – no dia)

Setenta anos a amanhar
Terra e papel
A lavrar
Com tinta e suor
Penedias matagais
E sei eu lá bem que mais
A plantar árvores
A cultivar flores
A regar amores
A semear
A esperar para ver
Um pau seco florir
Um zangão a zumbir
No gineceu de uma açucena
Donde irão sair
Filhos que nos farão
Chorar e rir
Netos a nascer
E nós
Neles
Com eles
Por eles
E para eles
A crescer
A renascer
A recusar morrer
Antes de ter
De ter que ser

O pior da morte
É esperar por ela
Por isso eu pela morte
Nunca espero
A mim o que me importa é
Viver.

Tenho filhos tenho um neto
Plantei árvores a eito
Escrevi livros a rodos
Sofri por mim e por todos
Só não vivi quanto quis.
Será, Vida, que eu já fiz
Jus a viver?
É só o que me falta
E resta
Viver em festa
Viver viver viver
Cantar sofrer
Plantar árvores
Escrever quimeras
Até mais não poder
Até deixar de ser
Árvore Poema
Renovada Primavera.

André Moa



sexta-feira, 19 de março de 2010

UMA VIDA EM VERSOS

Susana e Pedro Miguel com dois e três anos, respectivamente, à época em que foram escritos estes poemas. Hoje têm 40 e 41. Como cresceram! E tão depressa!

AOS SETENTA SÓ SESSENTA DE POESIA - 8

ANTOLOGIA DE UM DESCONHECIDO

(edição do autor – colecção Degrau 2)

1973

CANTATA DA PAZ EM DÓ MENOR
(CONTINUAÇÃO)

6.º andamento – “andante”
“pianissimo”

- Senhor barqueiro, como vai a vida?
- Não vai, senhor, não vai. Como há-de ir?
Rio abaixo… rio acima…
Fecha a boca… aperta o cinto…
e cá vamos… morrendo.

*****
7.º andamento – “ andantino”

GUERRA E PAZ NO VIETNAME[1]

mesa quadrada
mesa redonda
mesa oval
mesa rectangular
PAZ
a estrangular

*****
8.º andamento – “allegretto”

AQUI JAZ A PAZ

a PAZ morreu há muito
fala-se em conluio para a sua exumação

aqui… ali… dia-a-dia… “floresce”
nos lábios “generosos” da metralha

algures… não sei bem onde…
longos anos permanece…
imóvel… numa urna… tipo mesa…
em exposição…
para gáudio da canalha

*****
9.º andamento – “grazioso”


SAUDADES DE MAIO[2]


este maio
é maio
mas não é
florido

maio
em
des
maio

maio
des
maiado

maio
sem
maias

flores tristes
flores velhas
de sofrimento vermelhas
de medos acizentadas

maio de
flores
desmaiadas

maio de
bocas
caladas


[1] A Guerra do Vietname foi um conflito armado que começou no ano de 1959 e terminou em 1975. Em 1964, os Estados Unidos resolveram entrar directamente no conflito. No início de 1973 começaram as negociações em Paris, tendo em vista um acordo de paz. O primeiro e “transcendental” problema levantado teve a ver com o formato da mesa de reuniões. Eis a razão deste meu epigrama, deste meu insignificante mas sentido grito de indignação, mero apontamento poético do caricato da situação. Quando o que urgia era a paz, os intervenientes levaram a discutir dias e dias, a ponto de colocarem em perigo a continuação das negociações, o formato da mesa onde se sentarem.
[2] Uma vez mais o 1.º de Maio foi silenciado. Corriam os idos dos anos do fim da década de 60. Estávamos, continuávamos, submetidos à ditadura do velho regime, ironicamente auto denominado “Estado Novo”

quarta-feira, 17 de março de 2010

CICLO EMOÇÃO

Ernesto Leandro e Paixão Lima, aos dezassete anos de idade, em Tabuaço
Fotógrafo - André Moa

OBSTETRA

Com a cabeça toucada
E a boca mascarada,
Sou o obstetra da minha poesia.
Não quer sair,
Como costumava vir
Naturalmente.
Agarro no bisturi
E rasgo a parede da imaginação
Com a concentração
Do operador consciente;
Meto a mão na procura
De qualquer coisa;
Agarro e puxo devagar.

Absorto,
Entrego um nado morto.

Ernesto Leandro

segunda-feira, 15 de março de 2010

CICLO PAIXÃO







Rufus - o maior cão do mundo - Lira - a cadela salvadora -

RUFUS E LIRA
OU
OS CÃES DO PAIXÃO

Recebi do Paixão Lima o texto que segue em que ele chora a perda do Rufus e presta homenagem à Lira que um dia lhe salvou a vida.
A mim, que não morro de amores por cães, resta-me desejar paz à alma canina do Rufus e longa vida à Lira.
André Moa

«Tenho uma cadelinha de dois palmos, de cor preta, de barbela branca e com a ponta das quatro patas também brancas. Parece, por vezes, uma cabritinha acabada de nascer. Não pára quieta um só instante como se tivesse bichinhos carpinteiros. No seu andar apressado como quem anda sempre atrasada, não dá descanso às suas pantufinhas brancas que com graça move sem parar. Muito medrosa e tímida, é de raça pura rafeirinha e chama-se Lira. Não sendo um coala ou ursinho de brincar, parece ser também um bichinho de peluche preto e branco de olhos dourados e expressivos. Foi um presente da minha Filha num certo Natal.
- Pega lá Pai! Para esqueceres o outro! E põe-me no colo a Lira ainda criança.
O outro era o Rufus. O maior cão do mundo. Pesava mais de sessenta quilos de músculos e potência. Felizmente era manso. Mandei construir uma casota de madeira revestida a zinco para ele e, contrariado, fui forçado a prendê-lo com um cadeado de ferro para lhe limitar o espaço e proteger, assim, as plantas que a minha Mulher tanto prezava. Para poder transportar o Rufus XXL, no momento de trocar de carro, optei por uma carrinha espaçosa. O Rufus adorava andar de carro na mala da carrinha, que ocupava totalmente. Ofereceram-me o cão ainda cachorrinho e ele foi crescendo, crescendo até se transformar num autêntico T.I.R. difícil de manobrar.
Certa vez, encontrando-me sozinho em Tabuaço no meu velho casarão (ainda não tinha construído a casa nova), fui acordado de noite por ruídos esquisitos que me pareceram passos e vozes abafadas. Não sendo particularmente medroso, não deixei, mesmo assim, de sentir um frio arrepiante pela espinha acima. Como os ruídos continuavam sem parar, de ranger de degraus de madeira e de portas a bater, levantei-me de foguetão tomado de algum pânico. Fui a correr buscar o Rufus. O gigante, com soberana indiferença, deita-se à porta do meu quarto como guarda sentinela. Dormi o resto da noite completamente descansado.
Certo dia, ao afagar o Rufus, notei um nódulo no pescoço. Tive um mau pressentimento. Feita a biopsia, confirmou-se o diagnóstico mais sombrio. Era um linfoma maligno e dos mais agressivos. Não tinha mais de seis meses de vida. Foi um grande choque para todos. Toda a família chorou. Quando se aproximava o fim e o seu sofrimento era visível e insuportável, o veterinário propôs-nos pôr-lhe termo à vida. Depois de uma sentida cerimónia de despedida, o Rufus partiu para não mais voltar. No momento da execução, abracei, comovido, aquele pescoço enorme e pedindo perdão beijei-o no focinho. Não sofreu nada, afirmou peremptório o veterinário.
O Rufus morreu! Mas eu morri também um pouco com a sua morte. Jurei, a mim mesmo nunca mais ter cães. Um juramento falso, resultante do desgosto enorme que senti e que ainda hoje perdura. Agora tenho a Lira.
Sempre gostei de cães, como adoro os lobos. Os pais de todos os cães.
Para acabar este testemunho sentido aos nossos amigos de quatro patas, vou relatar um episódio revelador do relacionamento harmonioso entre os homens e os cães:
Andava a passear a Lira pela trela cingida ao seu débil corpo, quando sou atacado por um enorme rottweiler. Só tive tempo de pegar nela ao colo. Quando sou derrubado pelo monstro soltei a Lira e gritei-lhe que fugisse, já que me sentia incapaz de a proteger. Qual não é o meu assombro quando reparo que a Lira à solta, em lugar de fugir, resolve, como amiga solidária, enfrentar o feroz animal. E fê-lo, com uma ferocidade inacreditável e incompreensível, para quem é tão tímida e assustadiça, que até dos foguetes e da trovoada tem medo. Costas com costas, ambos lutámos bravamente como os guerreiros antigos. Se tivéssemos de morrer, então morreríamos juntos. Felizmente o dono do rottweiler conseguiu dominar o animal e fomos salvos. Quando peguei na Lira ao colo, verifico preocupado que está toda ensanguentada mas feliz. Não pára de me lamber a cara toda satisfeita e orgulhosa e segreda-me ao ouvido com convicção: - Estás a ver?! Se não fosse eu, não te safavas!»
Paixão Lima

sábado, 13 de março de 2010

UMA VIDA EM VERSOS

Um poeta a fingir de Tarzan

AOS SETENTA SÓ SESSENTA DE POESIA - 7
(CONTINUAÇÃO)

ANTOLOGIA DE UM DESCONHECIDO
(edição do autor – colecção Degrau 2)
1973
CANTATA DA PAZ EM DÓ MENOR
3.º andamento - “lento”

ESPERANÇA


abraço-a ainda
por força de a repetir

um dia há-de ser
o sol a esmagar
este mais-que-entardecer

*****
4.º andamento – “moderato

SOMBRAS


candeeiro tosca lua

paredes brancura cal

vida escudos na rua

liberdade sabe a sal

*****
5.º andamento – “adágio”

CONVERSA FIADA


- trabalha meu filho
quem não trabalha não come
- ó pai os ricos não comem?

- trabalha meu filho
do trabalho é que vem tudo
já dizia o teu avô
- ó pai roubar é trabalho?
- trabalha meu filho
trabalhar é honra
- ó pai passar fome é honra?

- trabalha meu filho
o trabalho dignifica
- ó pai ser escravo dignifica?

quinta-feira, 11 de março de 2010

CICLO EMOÇÃO












VELEIRO DO SONHO

O rio corre em cor de chumbo
No seu leito entediado.
Nas margens,
Enormes pedras alcandoradas
Num murmúrio de silêncio abafado.

Nós somos os barqueiros,
Sem barcos,
Na aventura de viagens
Num tempo anterior a nós.

Parcos de realidade,
Desprendidos do presente,
Ancoramos exaustos da ausente
Excitação apetecida


Num mundo com marcos
E com regras
Sem sentido,
O futuro perdeu-se nas refregas

Duma luta inglória.
Então, feridos, maltratados,
Embarcamos, novamente,
No veleiro do sonho
Em viagem sem rumo e sem memória.
( Ernesto Leandro)

terça-feira, 9 de março de 2010

CICLO PAIXÃO

Paixão Lima - com quatro meses

CASOS, ACASOS E OCASOS DA VIDA

2
Daquele tempo de estudante, recordo o Paulo Felício. Filho único de pais abastados. O pai era industrial têxtil e geria, com algum sucesso, uma fábrica de camisas para exportação.
Falo do Paulo, pela singularidade do seu feitio. Apesar de rico, era extremamente poupado e duma avareza tal, que chegava a enervar. Por tal facto, era conhecido, por todos como Paulo o judeu. Ainda hoje, não percebo a razão do cognome. Relato o facto, não o comento. Cioso do que lhe pertencia, muito organizado, geria o seu parco espólio estudantil com cuidado e reserva. Desconfiava de todos e não gostava de emprestar nada. Para não se gastar! - dizia para se justificar. Em consequência desta atitude insólita, choviam os pedidos de empréstimo ao Paulo. Pedidos que eram tantos e tão insistentes que o Paulo, talvez por cansaço, ás vezes cedia e emprestava.
Certo dia, consegui que me emprestasse um lápis, o que foi um feito. Recomendou-me, repetidamente, que não pressionasse demasiado o lápis para o bico não partir. Antes da entrega, não deixou de medir, cuidadosamente, o comprimento do lápis com uma régua graduada. Por malandrice, desfiz o lápis na aguçadeira, até reduzi-lo a metade. O Paulo emprestou-me um lápis e eu devolvi-lhe meio lápis. Foi aos «arames». Gritou, barafustou, ameaçou e por fim chorou. A turma gargalhou em coro. Irado e inconformado, o Paulo levanta-se e vai fazer queixa ao prefeito, o temido Osório. Homem de má cara, de grande envergadura e a quem chamávamos de urso, por analogia com o dito. O urso, nesse dia, estava mal disposto. Gritou para o Paulo: - O menino é parvo?! - Gargalhada geral de concordância. - Mas... - diz o Paulo intimidado.- - - Nem mas, nem meio mas. Não emprestasse! Vá já para o seu lugar! - ordenou o Osório furioso.
Outra particularidade curiosa do Paulo era ser um «patriota». Admirava Salazar que considerava ser o maior estadista do seu tempo. Uma atitude normal se atendermos às suas origens sociais. Nascido no seio duma família da média burguesia conservadora, o Pai era membro activo da União Nacional e até Regedor na sua aldeia natal. Concluído o 7º. ano do liceu, nunca mais vi o Paulo.
Certo dia, decorridos cerca de trinta anos sobre os acontecimentos relatados, encontrava-me de visita a um salão automóvel na Exponor em Matosinhos, quando sou violentamente abraçado por um indivíduo desconhecido, alto e gordo. Surpreendido com o acto que me pareceu pouco amistoso e quando me preparava para protestar, o indivíduo em questão, com uma estrondosa gargalhada, grita todo satisfeito. - Não me reconheces pá? Tu não és o Paixão ? Conheci-te logo! - diz o desconhecido com visível alegria. Concordei que, de facto era o Paixão o que não me impede de o questionar: - E o senhor quem é?! - Eu sou o Paulo Felício! O judeu! - acrescentou para me refrescar a memória. - O Paulo Felício! - exclamo assombrado - Claro que me lembro de ti! - Anda cá! Temos muito que conversar - e vai daí, arrasta-me para a mesa dum café próximo. Bebendo uns «finos», vamos conversando. Relata-me a sua vida passada. O Pai morreu num acidente de automóvel e a fabriqueta de camisas faliu. Crivado de dívidas aos bancos e aos fornecedores, foi forçado a vender todos os seus bens. Só conseguiu salvar, e a muito custo, a casa onde ainda hoje vive. Desgostoso com o insucesso como empresário, resolveu alistar-se na tropa como voluntário. Para servir a Pátria que «estava em perigo» - afirma com orgulho. Fez três comissões de serviço nas colónias e foi até condecorado no 10 de Junho com a Cruz de Guerra. - Arriscávamos a pele em África mas ganhávamos bom dinheiro. Era compensador! - afirma peremptório. - Então por que não fizeste mais comissões de serviço, se era assim tão rendoso?! - digo eu. - A última comissão correu mal. Vê lá tu ! - exclama ainda sentido - Não fui desta para melhor por mero acaso. Havíamos capturado um «turra» no mato. E não é que o tipo consegue arrancar violentamente a arma das mãos de um soldado e dispara contra mim desfazendo-me o ombro esquerdo?! - afirma ainda admirado com a ocorrência. - O gajo não chegou ao acampamento. Antes de desfalecer, ainda tive forças de ordenar ao cabo que lhe tirasse o «retrato». - Compreendo. Para a propaganda, não?! digo com ingenuidade.
- Lá vens tu com a tua velha ironia. - diz o Paulo cinicamente. - A máquina fotográfica era uma G.3, compreendes? - Compreendo! - respondo acenando afirmativamente. Ao despedir-se, trocamos endereços e solicita-me que vá visitá-lo, pois quer apresentar-me à família. Mexendo e remexendo nos bolsos como quem anda à procura de alguma coisa, despede-se dizendo: Ó Paixão, como não tenho trocado, importas-te de pagar a despesa? Para a próxima pago eu.
Meses mais tarde, ao passar perto da casa do Paulo, resolvi visitá-lo. Recebe-me de braços abertos, apresenta-me a esposa e os quatro filhos. Conversamos sobre as banalidades do costume nestas circunstâncias. Ao despedir-me e esforçando-me por ser amável, sempre lhe fui dizendo: - És um homem feliz, Paulo! Tens uma esposa admirável e quatro filhos que são encantadores.
-Tens razão! - diz com pouca convicção e acrescenta - Não calculas o que me tem custado. O dinheirão que se gasta com a educação dos «putos». Tanto eu como a minha mulher somos uns escravos do trabalho. Até horas extraordinárias fazemos para manter o nível. - Isso é o preço que temos de pagar pela felicidade. - Mas é caro! - responde-me de pronto o Paulo Felício. Olhei para ele com comiseração e alguma ironia e não me contive que não lhe dissesse: - Tenho a impressão, que apesar das vicissitudes, ainda vais morrer rico! - Estou esperançado nisso, Paixão! - afirma convicto como quem recebe um elogio.
Ao retirar-me, esforço-me por compreender o significado do que se passou, mas em vão. Para o Paulo, tudo tem o seu preço. E tudo é caro. Até a felicidade. O homem do lápis, o Paulo Felício, continua igual a si próprio. Não evoluiu no tempo. Não percebe que o dinheiro é uma ferramenta de que nos servimos, para obter bens e serviços que amenizem a dureza da nossa própria existência. Duma coisa estou certo. O Paulo Felício vai morrer rico.

segunda-feira, 8 de março de 2010

DIA INTERNACIONAL DA MULHER











Neste oito de Março, dia especialmente dedicado à mulher, dei por mim a formular as seguintes questões:

Mulher? Que bicho é esse?

Mulher - espécie em vias de extinção, a justificar um dia dedicado à sua conservação? Porquê? Para quê?
Mulher - Cidadão (usei o masculino de propósito para realçar o tratamento igualitário que para todos propugno) cidadão de pleno direito a quem são devidos todos os direitos e exigível o cumprimento de todos os deveres inerentes à cidadania?

Como para mim a mulher, madre e suporte da humanidade ao longo dos séculos e até ao fim dos tempos, é uma cidadã de pleno direito, logo, como todo e qualquer cidadão, a merecer ser tratada como igual, com total respeito pela diferença que faz da mulher, mulher; do homem, homem; de uma flor, uma flor; de um cão, um cão; sinto uma certa relutância em colocar muita ênfase neste dia à mulher dedicado.

Reconhecendo, porém, que o estatuto da mulher, cidadã em paridade com o homem, está longe de ser aceite, respeitado e cumprido, então que haja o Dia Internacional da Mulher, quanto mais não seja como um MEMENTO HOMMO QUIA MULIER EST – LEMBRA-TE, Ó HOMEM QUE A MULHER EXISTE.
E existe e pensa e sente e vive a teu lado, como teu par, a quem deves não apenas respeito, como a própria vida, como o amor na sua mais apurada essência.

Viva, pois, o dia da mulher. Vivam todas as mulheres do mundo, em permanente luta pela sua libertação real e definitiva.

Mas não me vou dedicar especialmente neste dia à mulher. Os outros que a louvem e bem tratem hoje.
Por mim, reservo as minhas fracas forças para a exaltar, com respeito, admiração e penhor eternos nos 365 dias de cada ano comum; nos 366 dias de cada ano bissexto.

Viva a MULHER! Vivam todas s mulheres. Vivam todos os homens. Vivam todos bem – mulheres e homens.

E façamos todos por ser felizes. Aos pares, que foi assim e para isso que a natureza nos enformou, nos formatou, nos moldou, nos preparou e fez.

Um beijinho muito especial, hoje, para vós, mulheres, minhas lindas e generosas companheiras de jornada.

André Moa

sábado, 6 de março de 2010

HABEMUS MERDAM (de novo)

Olegário Paz - ao centro - no Mucifal

Reabro aqui o ciclo da mexilenta caca para poder transcrever, com prazer e reconhecimento, o texto que o Olegário Paz, amigo indefectível e um dos autores do prefácio de MAU TEMPO NO ANAL, me enviou ontem, a meu pedido.
Como podem verificar, Olegário Paz escreveu-o no dia 5 de Setembro. Como o famigerado artigo de Pedro Mexia HABEMUS MERDAM saiu na revista LER desse mês, cheguei a aventar a hipótese de ter havido engano na data. O Olegário explicou. Como é assinante da revista, recebe-a logo no princípio do mês. Digo isto para evidenciar que o artigo que se segue foi escrito na hora. Só para me poupar, por eu na altura estar muito debilitado, é que não mo deu a conhecer. Fê-lo agora, por entretanto eu ter desvendado o «mistério» da caca.
Obrigado, caro Olegário.

«NOTA DE LEITURA
Amigo, aí vai o que senti ao ler a LER:
A revista LER, no seu nº 83 do corrente mês e ano, publica na rubrica “Biblioteca Fútil” uma infeliz recensão de Pedro Mexia ao livro de André Moa intitulado Mau Tempo no Anal – Diário de um Paciente. Mete dó a leitura desfocada que o articulista faz da narração realista do paciente que luta e consegue vencer um cancro no recto, vendo em tal testemunho «apenas um assustado gozo fecal». Repugna ler, saídos da pena do conceituado escriba, que as «leituras e ideias» de André Moa não são «mais memoráveis que uma mijinha depois de uma imperial». Confunde imaginar que Mexia esteja a dizer, atirando-os para o saco das nulidades, os nomes de Luís de Camões, António José da Silva, Almada Negreiros, Augusto França, Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill, Vergílio Ferreira, Onésimo Teotónio de Almeida, José Saramago, entre outros, cujas obras são objecto das «leituras» do paciente referidas em Mau Tempo no Anal. Enoja o sarcasmo: «Apreciamos o facto de as suas descargas intestinais serem amaciadas pelo último romance de João de Melo, mas, sem querer, Moa quase nos pede que adjectivemos essa literatura que ele tanto aprecia quando defeca». Não admirar A Divina Miséria, texto que o autor nem tinha tido hipótese de ler porque o tempo da sua escrita é anterior à publicação do livro do novelista açoriano, é uma coisa, falar dele nestes termos para ridicularizar André Moa é impróprio de qualquer um que se rotule de crítico literário.
Amadora, 5 de Setembro de 2009
Olegário Paz»

quinta-feira, 4 de março de 2010

AOS SETENTA só SESSENTA DE POESIA - 6

(CONTINUAÇÃO)

ANTOLOGIA DE UM DESCONHECIDO

Aqui transcrevo parte da contracapa do livro:

O autor nasceu com a guerra. Canta a Paz. Oficialmente, em 1/12/1939. Por homenagem às dores de parto de sua mãe, em 29/11/39. Em Tabuaço – vilória desconhecida do ignorado alto douro. Galgou muitos montes para fugir às amarras que lhe serviram de berço, mas tenta manter-se fiel às raízes que lhe informaram a alma e o resto.
Vive em Angra.
Publica «Antologia de um Desconhecido» a pedido de «várias famílias» e porque pensou que assim devia acontecer. Trabalho de um grupo de amigos (Santos Barros, Ivone Chinita, Fagundes, Lobão, etc.).
Capa do José Lúcio que até parece feita de propósito, mas não foi. Grupo que gastou na composição e impressão o mês de Junho 73. Voluntária e gratuitamente. Porque quis.

ANTOLOGIA DE UM DESCONHECIDO

(edição do autor – colecção Degrau 2)


Cantata da paz em dó menor

1.º andamento – “maestoso”


A PAZ É POSSÍVEL


Canto nem gregos nem troianos
Nem covardes nem tiranos

Entoo a liberdade livre
Do purismo dos puritanos
E da pólvora nos canos

Procuro a Paz vivida
E não apenas querida
(a paz dos falcões tem fezes
e a das pombas por vezes )

Aposto na Paz do homem esforçado
Até a ter encontrado

*****
2.º andamento – “largo”

“piano”

solidário morro
cada vez mais
frequentemente
em todos os lados
artificialmente

a natureza não ceifa o seu trigo
de blindado
nem de avião
não o seca na forca
nem o malha na prisão

solidário planto
a árvore da libertação

terça-feira, 2 de março de 2010

CICLO EMOÇÃO

Douro
margem esquerda, quintas de Adorigo-Tabuaço; margem direita, linha férrea e estação do Ferrão
foto de Osvaldo Ribeiro

Com toda a gente a queixar-se do rigoroso e prolongado inverno, nada melhor que um poema do Ernesto Leandro dedicado a São Inverno, que aqui cai que nem pedrada atirada contra o muro das lamentações, que nem acha atirada para a fogueira das nossas emoções.
Bem-hajas, caro irmão Ernesto.
Um grande abraço
André Moa

SÃO INVERNO, POETA

São inverno(s)
Farrapos de sonhos desfeitos
Na bruma do tempo em temporal;
Crianças descalças,
Vestidas de calças
Rotas, sem risos,
Sem lágrimas
Nos olhos em cataratas de sal.
Pobres carregando anos de solidão,
Envergonhados,
Destroçados,
Que já não pedem mais nada
Que pão!
Poetas do tempo perdido,
De asas sem penas
Por sonho vendido.
São Inverno:
Preserva essa promessa
De primavera eterna
No livro agora revelado.
Guarda-te com o teu nome
Na vida
Do frio e da neve,
E dá todo o calor que o poeta deve
Quando a poesia o tem escravizado.

Ernesto Leandro
 
Que cantan los poetas andaluces de ahora...