SEJAM MUITO BEM VINDOS A ESTE BLOG!--------ENA!-- TANTOS LEITORES DO MEU BLOG QUASE DIÁRIO! ---ESTA FOTO É UMA VISTA AÉREA DA MINHA TERRA,-TABUAÇO! UM ABRAÇO PARA CADA UM DE VÓS! -ANDRÉ MOA-

DIÁRIO DE UM PACIENTE II

domingo, 28 de fevereiro de 2010

CICLO PAIXÃO

António Paixão Lima
CASOS, ACASOS E OCASOS DA VIDA
1
Estou no salão do blogue do meu Irmão André Moa. Contra o que é habitual, reina um silêncio soturno. O Moa conversa comigo discretamente - Ouve lá António! Como irmão tens obrigações, não sei se sabes. - Não! Não sabia - digo já preocupado. - Vai entreter os convivas, principalmente as Senhoras. Tu és muito engraçado, irmão. Atrevo-me a discordar: - Não é tanto assim. Posso por vezes ter alguma graça, mas não sou engraçado. E como sabes, mais vale cair em graça do que ser engraçado. - Valha-te o demo, homem! Lá vens tu com a polémica e com o gosto excessivo que tens pelo contraditório. Até pareces um advogado - diz o meu Irmão com resignação e acrescenta -Na sala do meu blogue tem de reinar a alegria. Vês a Laurinha lá ao fundo, sentada, toda triste, ela que é tão alegre? Vai levantar a moral às tropas, António! Como não posso contrariar o meu Irmão, que tem mau génio, lá me dirijo ao salão no cumprimento da ordem. Mas antes não resisto a perguntar-lhe. - Entretanto o que vais fazer Moa? - Eu estou ocupado - responde-me um pouco azedo e continua - Vou ler a epístola do S. Paulo aos Coríntios. Vou analisar, com cuidado, as alarvidades que aquele tipo andou a pregar àqueles desgraçados. Depois de bater as palmas para chamar a atenção dos presentes e fazendo de Herman José passo a relatar a história para divertir:
A minha filha foi à cabeleireira. - É uma seca Pai. - Diz ela convicta. Eu concordo que é uma seca. Também passo por isso. - À espera de vez - continua ela enfastiada. - O tempão na cadeira das torturas e a conversa da treta. A propósito da conversa da treta vou contar-te um episódio curioso ocorrido ontem na cabeleireira - Diz lá filha. - digo eu para não contrariar. - Enquanto me tosquiavam o pêlo, ouvi falar de ti. - É um verdadeiro cavalheiro. Um homem à antiga. Cumprimenta toda a gente. É uma pessoa muito simpática. A minha filha a rir-se intimamente mas sem se manifestar. Às tantas começam a interrogá-la - Que faz; onde mora, etc., perguntas às quais vai respondendo mal-humorada e por monossílabos. Por fim, perguntam-lhe de quem é filha. Para esta pergunta não há monossílabo que resista. Embaraçada interroga-se: E agora? O nome não basta.
O Pai de tão reservado prima pelo anonimato. A descrição física é insuficiente pela sua vulgaridade. Como herdou de mim algum sentido de humor, desenrasca-se proclamando: - Olhe! Eu sou filha do simpático. Gargalhada geral no galinheiro: cocó, cocó, cocó. Conclusão geral: - A história ficou mais enriquecida. Além de Filipe o belo, do Fernando o formoso, do Moa d/EU)s e grande poeta, há agora também o António o simpático. Podem começar a roer as unhas de inveja.
Paixão Lima

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010


Com a devida vénia, transcrevo aqui a carta aberta que a corajosa Maria editou no seu blogue “OS ALCATRUZES DA RODA”.
CARTA ABERTA A PEDRO MEXIA
O senhor Pedro Mexia, mexeu onde não devia. Quem é o senhor para dizer mal de um livro, que eu aposto que não leu? Folheou, quando muito, como faz a maior parte dos críticos literários. Apanhou algumas frases e vá de escrever e criticar. Qualquer ser humano com um mínimo de sentimentos e discernimento, nunca faria uma crítica tão parva, tão porca, como a que fez.Que sabe o senhor da heroicidade do homem que criticou? Que ideia tem do que ele sofreu no corpo e na alma ao escrevê-lo?
Passa-lhe pela cabeça o que é, ir fazer um simples exame de rotina, e sair de lá com dois cancros declarados? Faz uma ideia do que é passar dias e dias, passeando uma algália atrás? Suponho que apesar da sua ignorância, saiba onde esta é metida. Acharia graça ter uma por umas horas? Seria capaz de ter coragem de descrever isso? Não tinha. O senhor só é grande a escrever m...
Conheci André Moa depois de ler o livro. Seria o senhor homem para, alimentado apenas a sumos de vegetais, cantar, recitar, ser a alma de uma reunião de amigos uma tarde inteira, sem um desfalecimento, sem um rito de dor, sem um olhar de tristeza? Não acredito. Essa gordurinha balofa não aguentava.
Leia o livro todo e depois fale. Leia o livro do Salvador Vaz da Silva e aprenda com eles a ser homem. Até lá não fale deles. Cale-se. Pense qual seria a sua reacção se tivesse um cancro só.
Quanto a Vitorino Nemésio e Torga, que o senhor não deve ter lido, deixe-os fora disto.
Senhor Mexia não mexa no que não sabe. É melhor estar calado.
Sem respeito nem consideração
Maria!»

Cara Maria,
Convocaste-me e eu lá fui ao teu blogue. Sem imaginar o que me esperava. E agora, aqui estou eu a agradecer-te, muito comovido, com os olhos a lacrimejar. Emocionaste-me muito com a tua solidariedade, a tua amizade, o teu costumado desassombro, com a tua objectiva, incisiva e muito bem urdida apreciação. Tu dizes nesta carta aberta o que eu, no fundo, pensei. E foi isso que me indignou. Falar do que não se deu ao cuidado de ler e apreciar, devidamente. Que dissesse mal do livro, mas com objectividade e conhecimento de causa. Assim, o autor da crónica armou-se aos cucos e actuou tal e qual um cuco, um passarão todo ancho de esperteza saloia, um João ratão, um Chico esperto.
Como se sabe, o cuco não constrói o seu próprio ninho. Rouba o ninho a outros. E, assim, à custa de seres alados, honestos, obreiros e diligentes, o cuco lá vai conseguindo obter abrigo, chocar ovos, entreter-se a cantar naquele tom monocórdico e desinteressante de cuco: cu-cu; cu-cu; cu-cu.
E não sai nem passa disso.
Bem-hajas, amiga Maria.
André Moa.




quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

BOLETIM DE SAÚDE + HABEMUS MERDAM



1 - BOLETIM DE SAÚDE

Como estava previsto, fui hoje levantar as análises feitas na passada segunda-feira, dia 22, e ouvir sobre elas o veredicto do médico oncologista. «Lá vou eu para a audição da sentença», disse, ao sair de casa, rumo ao hospital. «Espero que seja de absolvição». Era o que eu esperava, por me sentir bem, e depois de um aturado tratamento naturista. A verdade é que os marcadores cancerígenos continuam a subir, passando de 28 e tal para 34 e pouco. O médico foi-me dizendo que já tinha anotado um novo tratamento de quimioterapia, mas que por ora ainda não, acrescentando: «enquanto o pau vai e vem, folgam as costas» E eu respirei fundo e senti-me folgado. Entretanto, prenunciou uma possível intervenção nos pulmões para eliminação dos tumores. De concreto, porém, só existe a prescrição de uma TAC, exame que irei fazer no dia 29 de Março. Até lá, como disse o clínico, folgam as costas. Até lá, digo eu, irei continuar o tratamento naturista, com o ânimo em alta, a mesma determinação, a costumada esperança.

2 – MAU TEMPO NO ANAL – Diário de Um Paciente

Há tempos, o Manuel Medeiros, livreiro, poeta e velho amigo, referiu, de fugida, que eu havia conquistado, pela mão de Pedro Mexia, uma página inteira de publicidade ao meu livro MAU TEMPO NO ANAL – Diário de Um Paciente – na revista LER. Não houve tempo para aprofundar o assunto, pelo que fiquei a leste quanto ao teor de tal página. Percebi depois pelas meias palavras e jungir de ombros do Onésimo e do meu cunhado que não seria leitura recomendável para um fragilizado doente em luta titânica contra um cancro. Assim, certamente para pouparem o doentinho, coitadinho, às turras com um cancrozinho, repetente, teimoso e renitente, deram-me a entender que melhor seria não ligar e esquecer. Ora, eu, que até contra cancros impiedosos luto, não descansei enquanto não adquiri a revista LER onde vinha inserto e li o tal artigo que transcrevo a seguir, para apreciação de todos. Para tal, desloquei-me ontem ao Círculo de Leitores onde fui amavelmente recebido por duas senhoritas que não desarmaram nem descansaram enquanto não descobriram o pretendido exemplar de que nem o mês da publicação sabia.
Sugiro a quem ainda o não leu que leia primeiro o livro, para melhor poder comparar e ajuizar.
De pronto saiu-me a réplica que vai a seguir à crónica de Pedro Mexia. Costuma dizer-se que a vingança serve-se fria. Aqui não se trata de vingança, mas de servir mais merda, requentada, a quem, pelos vistos, só de merda se alimenta. Deleitem-se todos como eu me deleitei, não com a merda, que essa será sempre pouca para o erudito cronista, sim com a leitura que vos proponho.

BIBLIOTECA FÚTIL
PEDRO MEXIA

«HABEMUS MERDAM
A minha avó contava que na década de 1920 quase todas as anedotas eram sobre chichi e cocó. Não apenas as gracinhas das crianças, mas também as chalaças adultas. Ao que parece, nada divertia tanto a Primeira Republica como a excreção. O mais engraçado é que na Terceira Republica essas fisiologias tenham ainda tanta, digamos, saída. Seria de supor que a «revolução sexual" entregasse ao sexo o monopólio piadético, deixando as poias para as brincadeiras infantis. Afinal não. E a prova mais estrondosa é Mau Tempo no Anal, de André Moa, agora publicado pela QuidNovi.
Este jurista, professor e autarca, vendo-se em apuros de saúde, decidiu escrever um Diário de Urn Paciente que fosse um elo de ligação à vida. É uma atitude compreensível e útil para nós todos, que podemos urn dia sofrer de males nas baixas prisões. Acontece que Moa escolheu urn registo de escrita discutível: uma odisseia de chichis e cocós.
A publicação esteve para se chamar Guerra do Senhor Recto e da Dona Próstata, e é assim, em registo de piada imberbe, que Moa escreve: «Ao lado, mesmo ao lado, mora o senhor Recto. Discreto e sonso, o senhor Recto recebe e aceita, com paciência de Job, toda a merda que os intestinos Ihe enviam e que ele, diligentemente, vai expelindo conforme pode. Farto de remover trampa, o senhor Recto, por vezes, vai-se abaixo das canetas, dá em definhar. É então que o comum dos mortais se apercebe da sua humilde mas profícua existência, da sua enorme importância». O sempre generoso Onésimo Teotónio de Almeida sugere, no prefácio, paralelos com textos como Illness as
Metaphor, de Susan Sontag; acontece que o texto de Sontag é uma reflexão sofisticada sobre o estatuto ontológico da doença; já Mau Tempo no Anal é apenas um assustado gozo fecal.
Ninguém deseja senão boa saúde a André Moa; mas isso não impede que esta confissão nos apareça como urn penoso exorcismo rabelaisiano. Uma espécie de salvação pela caca: «Ontem e hoje a expectativa maior que me dominava e preocupava familiares e amigos era a chegada de caca à alfândega. Uma descarga de mucosas na quarta--feira, gases na quinta-feira que davam para encher meia dúzia de gasómetros, mas nada de sólido e tranquilizador. Hoje à tardinha, sim senhor, chegou a tão esperada encomenda. E logo gritei, urbi et orbi, pelo telemóvel: Habemus merdam." E assim por diante, numa espécie de taxinomia merdosa: algálias, colonoscopias, guerras intestinais, sanitas, mijinhas, nádegas, hemorroidais, diarreias. A medicina como conversa de putos.
A situação é trágica, mas em vez de tragédia e empatia André Moa dá-nos piadas de 1922: «"Hoje vai ser de costas. Vá lá, deite-se com jeitinho, cuidado com o saco e a algália, puxe as pernas mais para dentro, endireite-se e abrace a marquesa." Sou republicano até à medula. Cumpri escrupulosamente as indicações, abracei-me a marques a, não me deu gozo nenhum, nem o mais ténue estremecimento de prazer. Nada. Bem pelo contrário. Deve ter-me repuxado a algália, fiquei com a uretra a sangrar. Mal regressei ao hospital, tive de mudar de calças do pijama, sujas de sangue atrás e a frente. Agora estou com urn penso higiénico dos grandes, entalado entre as pernas. E pensava eu que os homens estavam isentos dos contratempos da menstruação!" Etc., etc., numa disputa de medos e graçolas, com vitória das graçolas. Quando, num discurso, se diz «merda», essa é sempre a única palavra que todos ouvem.
Não ajuda o facto de André Moa, que já tinha ofendido Nemésio com o seu titulo, se entregar a frustres exercícios diarísticos torguianos, registando as suas leituras e ideias, não mais memoráveis que uma mijinha depois de uma imperial. Apreciamos o facto de as suas descargas intestinais serem amaciadas pelo ultimo romance de João de Melo, mas, sem querer, Moa quase nos pede que adjectivemos essa literatura que ele tanto aprecia quando defeca.
André Moa quis espantar os seus males, e felizmente conseguiu. Mas dessa experiência fica apenas aquilo que a minha avó recordava das anedotas dos anos 20: «Tenho defecado vezes sem conta. O ânus parece que arde, enquanto eu me desfaço em trampa.» Eu não o desminto. »


«BIBLIOTECA FÚTIL»
ou
a atracção pela merda

Há dias, um velho amigo
Alertou-me p’ra um artigo
De uma página, na «LER».
Como tinha a ver comigo,
Não quis fugir ao castigo
Das artes de maldizer.

O texto de que vos falo,
Podeis crer, é um regalo.
O autor, que nunca li,
Só mexe, mexe e remexe,
Qual bebezinho de creche,
Em cocó e em chichi.

Tinha muita coisa ao lado
Por que passou descuidado
O autor – Pedro Mexia.
Só viu à frente dos olhos,
Que nem besta com antolhos,
Merda, mijo… porcaria.

Pela merda obcecado
O «fútil» autor, coitado,
Consolou-se a chafurdar
Na merda que um doente,
Bem-disposto e paciente,
Com dores, andou a largar.

Quis lá bem saber das dores,
Dos bons e dos maus humores,
Do quanto sofri na pele!
Se eu soubesse que o Mexia,
Só da merda falaria,
Mais cagaria p’ra ele.

Sua «Biblioteca Fútil»
Seria menos inútil,
Se eu mais tivesse cagado.
Se fizesse um bolo grande,
Maior seria a glande
P’ra porco tão esfaimado.

Papaste tudo, papaste?
Nem a tua avó poupaste!
Será que tal obsessão
(contou-te ela, tu contaste)
Foi da avó que a herdaste,
Por tudo o que é excreção?

Gabo-te o gosto, Mexia!
Mexer só na porcaria!
Para encheres de merda as bossas?
Muda já de profissão,
Dedica-te ao cagalhão,
Põe-te a desentupir fossas.

Larga a «Biblioteca Fútil».
Serás por certo mais útil
No útil labor de almeida.
Deixa de ser cheira-cus,
De encher os teus baús
Com o que a outros sai da peida.

Procurando outra razão
Para lá da obsessão
Que o Mexia demonstra,
Descobri, por mero acaso,
O que agora vem ao caso:
Canto a república,“a monstra”.

O Mexia deve ser
Monárquico, estou em crer,
Apostólico, romano.
Daí o não ter gostado
De eu me ter manifestado
Laico e republicano.

Não gostou de eu ter brincado,
(Enquanto era bombardeado
Pela radioterapia),
Com o clero e a nobreza,
Por ter dito que a marquesa
Era gélida e fria.

Pedro, o cru, queria «tragédia»;
Eu optei pela comédia
Que toda a tragédia encerra.
O Mexia queria sangue;
Eu, apesar de exangue,
Ao cancro declarei guerra.

Frustrado, ficou raivoso
E pôs o cérebro adiposo,
Treinado no maldizer,
A destilar porcaria,
A ver merda em quanto lia.
Com vontade de a comer?

O Nemésio, coitado,
Foi por Mexia invocado.
Por eu o ter ofendido?
Não creio, amigo Mexia.
Sabe quem o conhecia
Como ele era divertido.

O Nemésio, se o lesse
E, se acaso, soubesse
Como o título surgiu,
Largaria uma gaitada:
terceirense gargalhada,
Como jamais se lhe ouviu.

Com o seu sentido de humor,
Dir-me-ia: «seu estupor,
Quem me vai pagar a tença?
Estou a brincar, já se vê.
Nunca pensei que um Cê
Fizesse toda a diferença».

Quanto ao Torga, mais sisudo,
Ficaria quedo e mudo
Ou, quando muito, diria:
«Num Diário, toda a gente
Verte o que sabe, o que sente,
Seja doce ou porcaria».

Porque gosta de mexer
Na merda, p’ra se entreter,
De forma tão suja e lerda,
Será caso p’ra dizer:
Sempre que te apetecer,
Ó Mexia, vai à merda!

André Moa

domingo, 21 de fevereiro de 2010

AOS SETENTA só SESSENTA DE POESIA - 5

Mãe e filhos, em Tabuaço, em 1957, pouco tempo antes de partirmos para Angola


(CONTINUAÇÃO)

4

Os primeiros versos a sério, quiçá já merecedores de serem considerados ténues manifestações de poesia, datam dos longínquos anos de 1955, 1956 e 1957. Foram, se não todos, a maioria deles escritos no Lago, lugar aprazível sobranceiro à Vila de Tabuaço, anfiteatro verde do meu primeiro palco da vida, refúgio e refrigério nas tardes cálidas de Verão; postal nórdico com os cedros e pinheiros revestidos de neve nos rigorosos meses de Inverno.
Calculo eu que nos finais de 1955, princípios de 1956 (como sabemos, o Inverno vai de 21 de Dezembro e 21 de Março, se bem que anos há em que o mês de Novembro é muito mais rigoroso que os seguintes), um dia Tabuaço acordou todo coberto por um senhor nevão, como não há memória de outro igual, nem anterior nem posterior a este de que ainda hoje se fala. A serra parecia um campo de batalha alvo de neve, pejado de cadáveres verdes, enquanto sobre a vila estralejava forte tiroteio. Eram os ramos das árvores a ceder e a quebrar ao peso da neve e do sincelo. Ruas e estradas ficaram intransitáveis durante oito dias. As escolas encerraram durante aqueles dias. Foi uma festa para a estudantada do externato. Rapazes e raparigas engalfinhados durante todos aqueles santos dias em autênticas batalhas com bolas de neve que só serviam paras aproximar as almas e aquecer os corações. À noite, o embrião de poeta sonhava e escrevia ardentes poemas de amor.
Ubi sunt? Sepultados no pó dos caminhos, reduzidos a uma massa informe de lama em 1969, sob uma tremenda enxurrada que desfez e sepultou ad aeternum todo o espólio da minha juventude, inclusivamente o caderno onde ia escrevinhando os meus poemas adolescentes. Os que levei de Tabuaço e os que escrevi em Luanda, para onde emigrara em Janeiro de 1958, com a promissora e esperançosa idade de dezoito anos, e onde vivi até finais de 1964. O amor os gerou, a água os levou. Salvou-se um ou outro que a minha fraca memória lá conseguiu reproduzir e que mais tarde incluí num dos quatro livros da “ANTOLOGIA DE UM DESCONHECIDO”, clandestinamente compilada e passada a estêncil, na multiplicadora da paróquia de São Pedro, cidade de Angra do Heroísmo, onde preponderava o jovem, progressista e entusiasta Padre Avelino Soares, graças ao empenho e labor de meia dúzia de estudantes amigos, então a frequentar o curso complementar no liceu de Angra do Heroísmo, sob a batuta dos indefectíveis e saudosos amigos, poetas também eles, José Henrique Santos Barros e Ivone Chinita. Desse grupo de rapazes aguerridos, recordo aqui, com agrado, agradecimento e saudade, para lá do malogrado casal e do Padre Avelino Soares: o Lobão que emigrou pouco tempo depois para os Estados Unidos da América, tendo-lhe perdido o rasto, até hoje; o José Lúcio, autor da pintura constante da capa (o José Lúcio veio para Lisboa, sei que foi aluno brilhante e mais tarde professor da Escola de Arroios, vi-o uma vez ou outra em casa do Santos Barros, mas isso já foi há cerca de trinta anos. Nunca mais soube dele); o Fagundes. O Luís Fagundes Duarte tornou-se um filólogo de valor. É professor na Universidade Nova de Lisboa e exerceu vários cargos políticos, nomeadamente nos Açores, sendo actualmente Deputado da Assembleia da República. Revejo-o de longe em longe na Casa dos Açores em Lisboa. Há tempos fez-me lembrar que foi ele quem dactilografou os poemas desta pequena Antologia. Que honra! Faz-me lembrar a célebre quadra do António Aleixo, alusiva ao seu amigo professor de liceu, Dr. Joaquim Magalhães:

Não há nenhum milionário
que seja feliz como eu:
tenho como secretário
um professor do liceu.

O António Aleixo que me desculpe, mas eu tenho razões para me sentir ainda mais feliz do que ele, pois que tive como “dactilógrafo” um futuro e ilustre professor universitário.
Como diria o nosso querido Vinícius de Morais: Sarabá, amigo Fagundes!

sábado, 20 de fevereiro de 2010

CICLO EMOÇÃO

Ernesto Leandro a declamar


CICLO EMOÇÃO 2

Voltemos à poesia de Ernesto Leandro, ao ciclo emoção, que emoção é com os poetas e com os que o não são, mas sentem a poesia, a beleza, a arte, a vida, a amizade, a solidariedade, o amor.
E cá temos nós hoje um poeta a cantar outro poeta, neste caso Florbela Espanca, num poema de alto lá com ele.
Boa leitura.
André Moa

FLORBELA ESPANCA

No calor da planície alentejana
Ardeste em poesia.
Mais tarde, junto ao mar
De Vila do Conde,
Deste o coração a palpitar
Ao teu admirador italiano
No puro engano
De quem pressentia
Que a dor que te habitou,
Do berço à morte,
Não consentia
Uma entrega em alegria
Continuada,
Depois de consumada
No Tejo
A perca do teu grande amor,
A quem deras, sem pejo
E sem pudor,
O coração apaixonado
Sedento de entrega.
Morreste aí.
A morte física, depois,
Com dis, mês e ano,
Foi uma mera questão estatística.
A tua sorte foi moldada
E malfadada
Por alguém que te encrostou
O génio.
Nunca te libertaste
E tudo deste, a chorar,
Escrava obediente
Da musa impiedosa que encontraste
E nunca te deixou.
Entusiasmaste
Toda a gente que te leu,
Mas tu, indiferente,
Ao não poderes ressuscitá-lo,
Pelas tuas mãos morreste
Na tua única vitória na vida.
Ensinaste-nos
Que viver só importa
Se pela entrega incondicional
For permitida,
Até à eternidade,
A liberdade
No amor em exaltação plena.
Senão, não vale a pena.

Ernesto Leandro

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

CICLO PAIXÃO


Aproveitando-me da amizade, do saber, do humor e da graciosa escrita do meu caro amigo António Paixão Lima, abri um ciclo a que, com a devida vénia, me ocorreu apodar de Ciclo Paixão. Como não há uma sem duas, nem duas sem três, aqui vai a segunda intervenção.
André Moa

«Estava eu posto em sossego colhendo o doce fruto, isto é, saboreando o meu gelado preferido de chocolate com nozes, no meu lugar habitual.
O meu lugar habitual era na restauração dum centro comercial perto de casa sempre na mesma mesa (se possível).
O tempo, por mostrar má cara, não convidava a um passeio ao ar livre.
Assim, à falta de melhor e para ocupar o tempo, achei por bem reflectir um pouco por escrito. Escreve que escreve, o tempo foi passando até que, a determinada altura, a esferográfica por falta de carga, recusa-se a colaborar privando-me do meu instrumento de trabalho. Gesticulando furioso e com gestos largos procuro obrigar a preguiçosa esferográfica a trabalhar mas sem sucesso. Foi, então, que ouvi uma voz de mulher pronunciar suavemente - E se experimentasse esta? Sobressaltado levanto os olhos e deparo, surpreendido, com uma jovem beleza morena a entregar-me, solícita, uma elegante esferográfica branca. Num acto espontâneo aceito a esferográfica com gratidão e volto ao trabalho que me absorve por mais algum tempo. Por fim, por transpiração a mais ou inspiração a menos, resolvo interromper o trabalho. Recolho o fruto do trabalho na pasta e levanto-me da mesa. Ao fazê-lo, reconheço na mesa em frente a jovem da esferográfica em amena cavaqueira com outros jovens. Desactivo a esferográfica e reparo, então, gravada na mesma a palavra Bial, o nome dum laboratório de medicamentos. Aproximo-me da mesa em frente e devolvo a esferográfica à sua legítima proprietária com um obrigado expressivo. Esqueci a ocorrência.
Dias mais tarde, para aviar uma receita na farmácia no mesmo centro comercial, sou atendido por uma farmacêutica muito parecida com a jovem da esferográfica. Na dúvida não me manifesto e faço-me desentendido. Ao solicitar a minha rubrica na receita empresta-me a esferográfica que logo reconheci. Sem me conter pergunto-lhe - Foi a menina que me emprestou a esferográfica no outro dia, não foi? Pois fui - responde-me com uma gargalhada jovial. Reparando no nome de Susana inscrito no crachá da sua bata branca e num gesto galanteador dos anos 60 não me contive que não trauteasse uma canção conhecida: Susana, Susana...- Tu és o meu amor - conclui ela num gesto de garridice divertida e acrescenta - Eu já o conheço. Tenho-o visto andar por aí - Lá isso é verdade. Sou eu e o Santana Lopes - digo eu bem-humorado. Ao retirar-me deixando-a a rir bem-disposta foi então que notei na porta de vidro da farmácia o seguinte dístico: Directora técnica Dra. Susana...Sem conter a minha curiosidade volto para traz e pergunto-lhe: a Susana da esferográfica e a Susana Directora técnica são a mesma pessoa? Pois são e entrei para esta casa como uma simples estagiária - responde-me sem conter um certo orgulho. - Então tenho um problema sério para resolver - digo eu fingindo preocupação. - Qual?! - pergunta ela curiosa. - Não sei como devo tratá-la: como Susana da esferográfica, como Dra. Susana ou como Directora Susana? È um problema muito fácil de resolver - diz-me ela convicta e amável - Trate-me simplesmente por amiga Susana. E assim ganhei uma amiga que me tem sido útil.
António Paixão Lima

Caro amigo António Paixão,
Só por humildade começaste esta tua comovente e graciosa crónica dizendo: «Estava eu posto em sossego colhendo o doce fruto». Qual doce fruto! Tu fruíste foi uma suculenta salada de frutas variadas e gostosas, já para não dizer um pomar extenso e bem recheado. Ele foi gelado, ele foi chocolate, ele foi nozes, ele foi esferográficas, ele foi uma voz de mulher suave, ele foi uma jovem, uma beleza, uma morena que te deixou sobressaltado e surpreendido, ele foi farmacêutica, menina, Susana, ele foi canção a dois, ele foi Santana Lopes pelo meio, ele foi Directora, ele foi sei lá eu bem que mais. Afinal, tudo acabou em amabilidade, amizade e utilidade e não, como cheguei a temer a meio da leitura do teu recheado e bem-disposto texto, numa perigosa congestão. Talvez não venha a despropósito lembrar a recomendação de última hora que uma esposa, preocupada com a saúde do marido prestes a ausentar-se para longe, lhe fez: cuidado com as congestões.
Um abraço
André Moa

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

CICLO EMOÇÃO

CICLO EMOÇÃO - 1

Interrompido, (mas não esquecido, apenas intervalado) que está o CICLO PAIXÃO, abro aqui outra frente, dando início a um novo ciclo – O CICLO EMOÇÃO – que irá compor-se, fundamentalmente, de poemas e outros textos que o meu amigo e conterrâneo Ernesto Leandro me for enviando com destino a este blogue.
Filho de uma senhora de coração nobre e alma generosa, pedagoga inigualável, mulher que, com toda a propriedade, com a veracidade que me vem do meu sentir profundo, com um inesgotável carinho e uma eterna saudade, considero a minha mãe espiritual, pois que me moldou o carácter, no melhor que sou e cultivo, o Ernesto Leandro, na senda da mãe e do pai e do irmão, tornou-se na minha infância e juventude uma referência muito marcante e indelével.
O Ernesto Leandro e o Paixão Lima pertencem à minha geração, são meus conterrâneos, e, um ano e pouco mais velhos que eu, um e outro foram meus ídolos de infância e juventude, ainda que por razões diferentes.
Amigos pródigos arredados do meu ciclo social e relacional durante muitos anos, agora que os reencontrei, e sentindo por eles a mesma amizade e a consideração que sempre me mereceram, é pela escrita que vamos comungando os nossos sentimentos e nos vamos unindo cada vez mais e melhor.
Com que prazer e honra os trago até aqui, sabendo do óptimo contributo que irão prestar para fazer deste blogue, aberto a toda a gente, qual albergue de boas vontades e corações generosos, um lugar de convívio salutar, cativante, acolhedor.
O Ernesto Leandro, depois de me ter concedido o privilégio de me convidar a prefaciar o seu primeiro livro de poesia e prosa poética, publicou ainda, agora em parceria comigo, o livro de poemas «TABUAÇO DOUR)O)ADO – Cantata a Dois» que muitos dos frequentadores do “Cantinho do Poeta” deste blogue já conhecem.
Estava tentado a fazer aqui uma revelação pública, em primeira mão, mas, dado o adiantado desta apresentação, fica para uma próxima oportunidade. Por hoje, aqui fica, para regalo de todos, este poema do Ernesto Leandro que, segundo me revelou, estava guardado, há muito, na gaveta onde a maior parte da sua obra literária vive à espera de saltar cá para fora e poder respirar.

DEFINITIVAMENTE, NÂO


Em quase toda a minha vida,
Deus foi um absurdo evangélico
Que nunca soube compreender.
Rebuscava na inteligência,
No coração,
E nem pela premência
Da resposta
Não encontrava solução.
E foi sempre assim.
Pronto a responder a tudo,
Ficava mudo
Quando dele falavam.
Deus mora em cada um,
Ensinaram-me em menino
E eu acreditei.
Quando cresci, não havia Deus
Na minha morada.
Venho tentando a sua substituição
Em mim mesmo
Ao dar-me inteiro ao desgraçado,
Meu irmão,
Sozinho na caminhada.
Já não me é legítimo
Aguardar o milagre
Da equidade social
Quando trilho o caminho
Da minha estrada,
Muito mal traçada,
A obrigar a pressa a refrear.
E ao perguntar-me o porquê
De uma vida de frustração,
Encontro e cimento a razão
De nunca dele falar.

Ernesto Leandro

domingo, 14 de fevereiro de 2010

CORO DOS VELHOS DO DOURO


Neste dia dos enamorados, presto esta singela homenagem aos nossos avoengos durienses que, com suor, sacrifício, fome, sede e enamoramento, transformaram terras áridas, árduas e rudes numa região de atracção turística de âmbito mundial, erigiram o Douro Vinhateiro, hoje património da humanidade.

CORO DOS VELHOS DO DOURO

Gerados na dureza de um penedo
sob uma latada à luz da lua;
de uvas e de mosto alimentados
brincámos aos barquinhos de papel
nos estreitos regos da rua.

Cedo deixámos de brincar, que a vida
ainda imberbes nos puxou para as vindimas
para o rebusco da azeitona e da castanha
para a canga do cesto vindimeiro
encosta acima até o despejar,
úbere de mosto, dentro do lagar.

Cedo aprendemos a regar
as ressequidas cepas, a aguentar
o fio de água do Douro no estio
com o suor que o sol e a labuta
faziam saltar das nossas testas
para o chão calcinado, todo em gretas.

Casámos, fomos pais e, hoje, avós,
já nos falta a coragem para viver.
Apenas ruminamos o remorso
de não termos saído dos limites
das serras que nos cercam e nos tolhem
o voo ensaiado noite adentro,
entre o sono, a vigília e o lamento
de não termos gritado a tempo:
barco rabelo, tu não vás sem nós,
estrada, sonho, esperança, não te vás!

Agora que gritamos já nos falta a voz.

Fizemos deste rio, deste chão,
o nosso cais, a nossa foz,
o nosso pranto, o nosso caixão,
onde um dia nos havemos de deitar
a sonhar que somos barco em alto mar.

André Moa

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

CICLO PAIXÃO

CICLO PAIXÃO 2

Este comentário é dedicado ao Moa, o nosso André e à doce e frágil Maria. É uma discriminação positiva.
O Moa não teme nem a ele próprio (Deus) nem ao diabo. È um herói consagrado, um soldado veterano e intrépido. Um sobrevivente de mil batalhas vastas vezes condecorado por bravura em combate.
- Apresenta-se o soldado raso António! - declaro em voz alta fazendo-lhe a continência da praxe (para fazer alguma coisa). De seguida grito histericamente todo belicoso mas com todo o respeito e amizade:
- Às suas ordens, Senhor General!
Quanto à Maria, vou utilizar uma linguagem mais mansa, mais de acordo com o objecto de culto. Vou fazer uso duma linguagem mais metafórica, tanto ao meu gosto e jeito. Direi, cantarolando uma canção brasileira sempre em voga nesta época de máscaras:
A Maria diz que é fraca!
A Maria não é fraca, não!
Todas as Marias são fortes. A história está prenhe de Marias heróicas que se superaram e foram mais além da Taprobana, como diz o poeta. A começar pela Antonieta, que de brava que era, até perdeu a cabeça, para acabar na revolucionária e zaragateira Maria da Fonte.
A Maria não é uma Maria qualquer nem é a simplesmente Maria. É a Maria do meu coração. Do coração de todos os seus amigos, que são tantos e tão vastos, que formam uma legião imensa.
De botas da tropa calçada, na sua elegante farda «camuflada», vai a Maria firme para a batalha, consciente que é a batalha que define a guerra. Vai pela verdura, sempre formosa, mas vai segura. À sua volta, em apoio, marcha a legião dos seus amigos (a legião Invicta). Com o seu belo olhar (de lince), contempla o campo de batalha sem temor. Está confiante e decidida e não tremem de medo as suas elegantes pernas. A hora é incerta mas a vitória é certa. Ajeita o capacete de aço num gesto inconsciente de garridice bem feminino e avança cautelosa no terreno com a arma engatilhada. Pára, escuta e olha, não vá surgir um comboio que a atropele.
É certo que a nuvem negra, temporariamente, encobriu o sol, o seu sol. Mas a legião dos seus amigos, sopra em uníssono e na direcção da nuvem maléfica. A brisa daí resultante, vai transformar-se, por amor, em vento divino ciclónico que vai afastar e para sempre, a nuvem má.
E o Sol voltará então, e muito em breve, a brilhar com todo o seu esplendor e beleza para a Maria (só para a Maria).
SO LET IT BE WRITTEN.
SO LET IT BE DONE.

Paixão Lima

domingo, 7 de fevereiro de 2010

ANTÓNIO PAIXÃO LIMA - UM AMIGO DE INFÂNCIA E JUVENTUDE



Vista parcial de Tabuaço - jardim da biblioteca municipal




Recebi por e-mail esta graça de um amigo de infância que já não vejo há muitos anos, mas com quem ultimamente tenho trocado uns emails e dele recebido uns mimos como este que, com a devida vénia e o seu beneplácito, aqui fica registado para a posteridade, para gáudio meu e de todos os comensais desta casa. Assim o espero. Recebâmo-lo como ele bem merece.

«Como era portador da chave, utilizei-a e abri a porta. Uma luz ofuscante cegou-me por momentos o olhar. Parei, hesitante, no limiar algo amedrontado e tímido. Afinal, num assomo de coragem pouco habitual, sempre entrei.
A sala estava basta de gente. Predominava o elemento feminino, o mais complexo mas o mais sensível. Senti-me reconfortado e encorajado. Um surdo murmurar fazia-se ouvir à medida que me ia aproximando lentamente. Uma mulher (perdão), uma senhora, dirigiu-se ao meu encontro em passadas curtas e graciosas. Com sorriso enigmático e olhar interrogativo, interpela-me amigavelmente:
- O Senhor deve estar enganado. Possivelmente confundiu o número da porta. Onde pensa que está?!
Algo envergonhado e tartamudo sempre fui dizendo a custo:
- Não é aqui que mora o Senhor Deus, também conhecido por Moa?
- Sim! Responde-me admirada - Aqui é a Casa de Deus. - Eu queria falar com Ele. Tenho até no bolso uma carta de recomendação do Senhor Doutor lá da terra - digo eu ansioso. - Pois sim - diz ela amável - Mas neste momento Deus não está disponível. Para não ficar especado no meio da sala como um tonto, arraste uma cadeira e sente-se. Junte-se a nós. Quer tomar alguma coisa? Um sumo ou uma «imperial»? A medo respondi - Muito obrigado minha Senhora. Efectivamente estou cansado e com sede pois para chegar à Casa de Deus é uma carga de trabalhos e o caminho é difícil mas, se não fosse incómodo, preferia outra bebida. Já sei - responde-me ela satisfeita e prazenteira como quem descobre a pólvora. - Quer um copo de água. - Não minha Senhora - apresso-me a responder - A água, na minha terra, não é uma bebida. É um líquido que serve para regar as terras. Uma espécie de adubo para tornar os campos mais viçosos e produtivos. Só os animais, os quadrúpedes, se servem desse líquido talvez por não terem outro. Também utilizamos esse líquido para lavar, incluindo os pés e o resto, se tivermos quarto de banho, o que só os ricos têm. - Assim sendo, que bebida afinal é que o senhor pretende? Diz--me ela algo impaciente e acrescenta. - Quer uma cuba livre, um whisky ou um gin-tónico? Não se acanhe, homem. A Casa de Deus tem tudo só não tem comparação - diz a senhora enfadada. - Eu queria um pirolito - digo com acanhamento. - Um pirolito?! - exclama a senhora com assombro. - Mas que tem de especial essa bebida de que nunca ouvi falar?! - pergunta-me toda curiosa. - É uma bebida lá da minha terra. Tem muito vapor e faz muita espuma. É uma bebida apreciada e muito boa porque faz arrotar - concluo todo convencido. E pronto. Foi assim o meu primeiro contacto com Deus, isto é com o Moa.
Antes de me juntar aos convivas, já com o pirolito na mão, não deixei de me persignar repetidamente para afugentar para bem longe os inimigos do Moa. Em primeiro lugar o perverso caranguejo para dar o exemplo. Um pontapé bem forte no fundo das costas do antipático animal e que o diabo o leve para bem longe. Se já se viu um animalejo tão feio e que nem andar sabe. Anda sempre para traz. Curiosamente representa o meu signo. Daí o meu andar assimétrico. Tenho de pedir responsabilidades.»

António Paixão Lima

Costuma dizer-se que a vingança se serve fria. Mas como aqui não se trata de vingança, mas de «vingança», de retorquir a um amigo, a quente, calorosamente, tentando pagar-lhe com a mesma moeda, aqui vai a resposta:

- Quem ousa pedir-me responsabilidades?
- Credo, abrenúncio, chegou d(EU)s. E ouviu o seu remoque. Foi a brincar, senhor d(EU)s que este senhor falou. Não foi por mal. Ele referia-se ao caranguejo que tanto o tem apoquentado a si.
- A mim nada me apoquenta. Eu tudo sobrelevo.
- Ele pareceu-me bom rapaz, e só veio para estar em são convívio neste vosso recanto sagrado.
- A quem tu o dizes! Sei bem que ele é bom rapaz. Somos amigos de longa data, anota, se ainda o não sabias. E até me comoveu ao rejeitar uma cuba livre, (se bem que não seja de rejeitar uma Cuba Libre quanto mais não seja do bloqueio dos gringos), um uísque, que é bebida de homens de saia, feita de água escocesa e cevada roubada à ração dos cavalos, ou um gim tónico, que é pior do que óleo de fígado de bacalhau, e se ficou por um pirolito, por essa tão apreciada bebida da sua e minha infância. Rejeitou a água benta que tu lhe ofereceste e que ele considera boa para os animais, para optar pela água santa, pela água sã do pedregal, pela saborosa água de Tabuaço, da nossa terra, com que era feito o pirolito.
- Este senhor é seu conterrâneo, senhor meu d(EU)s?
Conterrâneos e amigos de infância, como já disse. Por isso lhe franqueei as chaves para aqui poder entrar sempre que pretender. E faço questão em que seja sempre bem acolhido nesta nossa e sua casa, e nela se sinta confortável e à vontade.
- Eu não poderei provar essa bebida que este seu amigo diz ter muito vapor e fazer muita espuma e que, ainda por cima, faz arrotar?
- Fazia. Fazia, que hoje em dia já não se fazem pirolitos. Pelo menos como os da nossa terra.
- Que pena!
- Que pena, dizes bem. E ele ainda se esqueceu de mencionar aquilo que para mim era o melhor do pirolito: a bola de vidro que lhe servia de tampa. As bolas de pirolito, a grande atracção, a nossa grande distracção, que nós disputávamos, ao empurrão e ao sopapo, se preciso fosse, para com elas jogarmos ao abafa e ao berlinde. Lembras-te, amigo Paixão?
- É verdade. Esqueci-me dessa sublime qualidade do pirolito.
- Sê bem-vindo, meu caro, a esta tua casa. Não te enganaste no número da porta, não senhor. Esta é de facto a casa virtual de d(EU)s, o cantinho deste teu amigo para receber os amigos, os verdadeiros e leais amigos como tu. Entra, senta-te e serve-te do que encontrares e te agradar e reparte connosco os bons nacos de prosa e de bom humor que guardas aí nos teus úberes alforges.
Ah! E não precisas de voltar a persignar-te nem para louvar d(EU)s - somos amigos ou não somos? - nem para esconjurar o demónio que não entra, nem por artes do diabo, nesta casa onde reina a concórdia, o amor, a amizade, a solidariedade.
Sê bem-vindo, amigo meu.
Um abraço.
André Moa
 
Que cantan los poetas andaluces de ahora...