Como estava previsto, fui hoje levantar as análises feitas na passada segunda-feira, dia 22, e ouvir sobre elas o veredicto do médico oncologista. «Lá vou eu para a audição da sentença», disse, ao sair de casa, rumo ao hospital. «Espero que seja de absolvição». Era o que eu esperava, por me sentir bem, e depois de um aturado tratamento naturista. A verdade é que os marcadores cancerígenos continuam a subir, passando de 28 e tal para 34 e pouco. O médico foi-me dizendo que já tinha anotado um novo tratamento de quimioterapia, mas que por ora ainda não, acrescentando: «enquanto o pau vai e vem, folgam as costas» E eu respirei fundo e senti-me folgado. Entretanto, prenunciou uma possível intervenção nos pulmões para eliminação dos tumores. De concreto, porém, só existe a prescrição de uma TAC, exame que irei fazer no dia 29 de Março. Até lá, como disse o clínico, folgam as costas. Até lá, digo eu, irei continuar o tratamento naturista, com o ânimo em alta, a mesma determinação, a costumada esperança.
2 – MAU TEMPO NO ANAL – Diário de Um Paciente
Há tempos, o Manuel Medeiros, livreiro, poeta e velho amigo, referiu, de fugida, que eu havia conquistado, pela mão de Pedro Mexia, uma página inteira de publicidade ao meu livro MAU TEMPO NO ANAL – Diário de Um Paciente – na revista LER. Não houve tempo para aprofundar o assunto, pelo que fiquei a leste quanto ao teor de tal página. Percebi depois pelas meias palavras e jungir de ombros do Onésimo e do meu cunhado que não seria leitura recomendável para um fragilizado doente em luta titânica contra um cancro. Assim, certamente para pouparem o doentinho, coitadinho, às turras com um cancrozinho, repetente, teimoso e renitente, deram-me a entender que melhor seria não ligar e esquecer. Ora, eu, que até contra cancros impiedosos luto, não descansei enquanto não adquiri a revista LER onde vinha inserto e li o tal artigo que transcrevo a seguir, para apreciação de todos. Para tal, desloquei-me ontem ao Círculo de Leitores onde fui amavelmente recebido por duas senhoritas que não desarmaram nem descansaram enquanto não descobriram o pretendido exemplar de que nem o mês da publicação sabia.

Sugiro a quem ainda o não leu que leia primeiro o livro, para melhor poder comparar e ajuizar.
De pronto saiu-me a réplica que vai a seguir à crónica de Pedro Mexia. Costuma dizer-se que a vingança serve-se fria. Aqui não se trata de vingança, mas de servir mais merda, requentada, a quem, pelos vistos, só de merda se alimenta. Deleitem-se todos como eu me deleitei, não com a merda, que essa será sempre pouca para o erudito cronista, sim com a leitura que vos proponho.
BIBLIOTECA FÚTIL
PEDRO MEXIA
«HABEMUS MERDAM
A minha avó contava que na década de 1920 quase todas as anedotas eram sobre chichi e cocó. Não apenas as gracinhas das crianças, mas também as chalaças adultas. Ao que parece, nada divertia tanto a Primeira Republica como a excreção. O mais engraçado é que na Terceira Republica essas fisiologias tenham ainda tanta, digamos, saída. Seria de supor que a «revolução sexual" entregasse ao sexo o monopólio piadético, deixando as poias para as brincadeiras infantis. Afinal não. E a prova mais estrondosa é Mau Tempo no Anal, de André Moa, agora publicado pela QuidNovi.
Este jurista, professor e autarca, vendo-se em apuros de saúde, decidiu escrever um Diário de Urn Paciente que fosse um elo de ligação à vida. É uma atitude compreensível e útil para nós todos, que podemos urn dia sofrer de males nas baixas prisões. Acontece que Moa escolheu urn registo de escrita discutível: uma odisseia de chichis e cocós.
A publicação esteve para se chamar Guerra do Senhor Recto e da Dona Próstata, e é assim, em registo de piada imberbe, que Moa escreve: «Ao lado, mesmo ao lado, mora o senhor Recto. Discreto e sonso, o senhor Recto recebe e aceita, com paciência de Job, toda a merda que os intestinos Ihe enviam e que ele, diligentemente, vai expelindo conforme pode. Farto de remover trampa, o senhor Recto, por vezes, vai-se abaixo das canetas, dá em definhar. É então que o comum dos mortais se apercebe da sua humilde mas profícua existência, da sua enorme importância». O sempre generoso Onésimo Teotónio de Almeida sugere, no prefácio, paralelos com textos como Illness as
Metaphor, de Susan Sontag; acontece que o texto de Sontag é uma reflexão sofisticada sobre o estatuto ontológico da doença; já Mau Tempo no Anal é apenas um assustado gozo fecal.
Ninguém deseja senão boa saúde a André Moa; mas isso não impede que esta confissão nos apareça como urn penoso exorcismo rabelaisiano. Uma espécie de salvação pela caca: «Ontem e hoje a expectativa maior que me dominava e preocupava familiares e amigos era a chegada de caca à alfândega. Uma descarga de mucosas na quarta--feira, gases na quinta-feira que davam para encher meia dúzia de gasómetros, mas nada de sólido e tranquilizador. Hoje à tardinha, sim senhor, chegou a tão esperada encomenda. E logo gritei, urbi et orbi, pelo telemóvel: Habemus merdam." E assim por diante, numa espécie de taxinomia merdosa: algálias, colonoscopias, guerras intestinais, sanitas, mijinhas, nádegas, hemorroidais, diarreias. A medicina como conversa de putos.
A situação é trágica, mas em vez de tragédia e empatia André Moa dá-nos piadas de 1922: «"Hoje vai ser de costas. Vá lá, deite-se com jeitinho, cuidado com o saco e a algália, puxe as pernas mais para dentro, endireite-se e abrace a marquesa." Sou republicano até à medula. Cumpri escrupulosamente as indicações, abracei-me a marques a, não me deu gozo nenhum, nem o mais ténue estremecimento de prazer. Nada. Bem pelo contrário. Deve ter-me repuxado a algália, fiquei com a uretra a sangrar. Mal regressei ao hospital, tive de mudar de calças do pijama, sujas de sangue atrás e a frente. Agora estou com urn penso higiénico dos grandes, entalado entre as pernas. E pensava eu que os homens estavam isentos dos contratempos da menstruação!" Etc., etc., numa disputa de medos e graçolas, com vitória das graçolas. Quando, num discurso, se diz «merda», essa é sempre a única palavra que todos ouvem.
Não ajuda o facto de André Moa, que já tinha ofendido Nemésio com o seu titulo, se entregar a frustres exercícios diarísticos torguianos, registando as suas leituras e ideias, não mais memoráveis que uma mijinha depois de uma imperial. Apreciamos o facto de as suas descargas intestinais serem amaciadas pelo ultimo romance de João de Melo, mas, sem querer, Moa quase nos pede que adjectivemos essa literatura que ele tanto aprecia quando defeca.
André Moa quis espantar os seus males, e felizmente conseguiu. Mas dessa experiência fica apenas aquilo que a minha avó recordava das anedotas dos anos 20: «Tenho defecado vezes sem conta. O ânus parece que arde, enquanto eu me desfaço em trampa.» Eu não o desminto. »
«BIBLIOTECA FÚTIL»
ou
a atracção pela merda
Há dias, um velho amigo
Alertou-me p’ra um artigo
De uma página, na «LER».
Como tinha a ver comigo,
Não quis fugir ao castigo
Das artes de maldizer.
O texto de que vos falo,
Podeis crer, é um regalo.
O autor, que nunca li,
Só mexe, mexe e remexe,
Qual bebezinho de creche,
Em cocó e em chichi.
Tinha muita coisa ao lado
Por que passou descuidado
O autor – Pedro Mexia.
Só viu à frente dos olhos,
Que nem besta com antolhos,
Merda, mijo… porcaria.
Pela merda obcecado
O «fútil» autor, coitado,
Consolou-se a chafurdar
Na merda que um doente,
Bem-disposto e paciente,
Com dores, andou a largar.
Quis lá bem saber das dores,
Dos bons e dos maus humores,
Do quanto sofri na pele!
Se eu soubesse que o Mexia,
Só da merda falaria,
Mais cagaria p’ra ele.
Sua «Biblioteca Fútil»
Seria menos inútil,
Se eu mais tivesse cagado.
Se fizesse um bolo grande,
Maior seria a glande
P’ra porco tão esfaimado.
Papaste tudo, papaste?
Nem a tua avó poupaste!
Será que tal obsessão
(contou-te ela, tu contaste)
Foi da avó que a herdaste,
Por tudo o que é excreção?
Gabo-te o gosto, Mexia!
Mexer só na porcaria!
Para encheres de merda as bossas?
Muda já de profissão,
Dedica-te ao cagalhão,
Põe-te a desentupir fossas.
Larga a «Biblioteca Fútil».
Serás por certo mais útil
No útil labor de almeida.
Deixa de ser cheira-cus,
De encher os teus baús
Com o que a outros sai da peida.
Procurando outra razão
Para lá da obsessão
Que o Mexia demonstra,
Descobri, por mero acaso,
O que agora vem ao caso:
Canto a república,“a monstra”.
O Mexia deve ser
Monárquico, estou em crer,
Apostólico, romano.
Daí o não ter gostado
De eu me ter manifestado
Laico e republicano.
Não gostou de eu ter brincado,
(Enquanto era bombardeado
Pela radioterapia),
Com o clero e a nobreza,
Por ter dito que a marquesa
Era gélida e fria.
Pedro, o cru, queria «tragédia»;
Eu optei pela comédia
Que toda a tragédia encerra.
O Mexia queria sangue;
Eu, apesar de exangue,
Ao cancro declarei guerra.
Frustrado, ficou raivoso
E pôs o cérebro adiposo,
Treinado no maldizer,
A destilar porcaria,
A ver merda em quanto lia.
Com vontade de a comer?
O Nemésio, coitado,
Foi por Mexia invocado.
Por eu o ter ofendido?
Não creio, amigo Mexia.
Sabe quem o conhecia
Como ele era divertido.
O Nemésio, se o lesse
E, se acaso, soubesse
Como o título surgiu,
Largaria uma gaitada:
terceirense gargalhada,
Como jamais se lhe ouviu.
Com o seu sentido de humor,
Dir-me-ia: «seu estupor,
Quem me vai pagar a tença?
Estou a brincar, já se vê.
Nunca pensei que um Cê
Fizesse toda a diferença».
Quanto ao Torga, mais sisudo,
Ficaria quedo e mudo
Ou, quando muito, diria:
«Num Diário, toda a gente
Verte o que sabe, o que sente,
Seja doce ou porcaria».
Porque gosta de mexer
Na merda, p’ra se entreter,
De forma tão suja e lerda,
Será caso p’ra dizer:
Sempre que te apetecer,
Ó Mexia, vai à merda!
André Moa