CRÓNICAS NO FEMININO


CANETA DE TINTA PERMANENTE
Insisto em lembrar caras de colegas, mas não consigo; elas esfumam-se na neblina que apaga os nomes sem rosto, escritos no rectângulo negro da lousa, de cada vez que o professor faz a chamada. Ficou apenas um: de traço fino, bem delineado, tez clara, cabelo aparado, bata impecavelmente branca e botas (luxo de poucos), que lhe aqueciam os pés. Tinha um ar frágil, como quase todos os meninos criados com as mordomias das famílias abastadas. Não se embrulhava em brigas, não rebolava pelo chão, não arranhava os joelhos no pó da terra, porque tinha de chegar a casa com o mesmo ar com que tinha saído – o cheiro a limpo e a franja moldada pela camada de brilhantina. Não o invejávamos no recreio, porque lhe eram vedadas todas as brincadeiras que descambassem no desalinho da sua figura de manequim. No entanto, dentro da sala de aulas, ele possuía o brinquedo mais cobiçado por todos – uma caneta de tinta permanente. Enquanto nós arranhávamos as palavras e os números, por força de um aparo que há muito havia ultrapassado o prazo de validade, ele comprazia-se em fazer deslizar, sobre a folha pautada do caderno, a sua caneta de tinta permanente. E nós ficávamos pasmados a olhar para aquela maravilha que não precisava de, constantemente, mergulhar no tinteiro do tampo da carteira, para se reabastecer de autonomia para mais uma cópia ou uma série de operações aritméticas. Ele escrevia e olhava-nos de soslaio, porque, no enviesado do seu olhar, percebia o desejo mal disfarçado que todos tínhamos de lhe pedir emprestado o objecto dos nossos sonhos. Até os exercícios de caligrafia ficavam mais bonitos! Pudera... ele não precisava de interromper o curso de nenhuma das hastes porque, no ventre da sua caneta, havia um êmbolo de borracha que guardava o suficiente para horas de trabalho.
Um dia descobri a solução. O que me faltava em riqueza, sobrava-me em rapidez e agilidade mental. Propus-lhe um negócio: ele emprestava-me a caneta por uns minutos e eu fazia-lhe os trabalhos de casa. E assim mantivemos esta cumplicidade de um comércio vivido na clandestinidade de outros olhares.
De cada vez que olho para o meu velho e desbotado diploma do ensino elementar, o jovem aprumado da Mocidade Portuguesa que, do lado esquerdo segura o estandarte, faz-me sempre lembrar o menino da caneta de tinta permanente – um aprumo prenhe de orgulho, por força de uma diferença que lhe alimenta as entranhas.
AIDA BAPTISTA
Apontamentos anticancro 10
«Antes de roçarmos a mortalidade, a vida parece-nos infinita, e preferimos manter esta perspectiva. Parece que nunca nos faltará tempo para irmos em busca da felicidade. Primeiro, tenho de acabar o curso, pagar os empréstimos, criar os meus filhos, reformar-me… mais tarde hei-de preocupar-me com a felicidade. Quando deixamos para amanhã a procura do essencial, podemos deixar a vida escapar-nos por entre os dedos sem sequer a termos saboreado.
Por vezes, o cancro cura esta estranha miopia, esta dança de hesitações. Ao expor a brevidade da vida, um diagnóstico de cancro pode restituir à vida o seu verdadeiro sabor.»
Do livro «Anticancro – um novo estilo de vida» de David Servan-Schreiber.