CICLO PAIXÃO



O dia rompera cinzento e frio, naquele mês de Dezembro. O Chico da Cotovia acordara cedo, como era seu hábito e já há muito que abandonara o leito. À claridade frouxa da luz da candeia de azeite pendurada num pequeno pau fixo à parede de xisto do casebre, retirou do «lume» o pote de ferro de três pés onde repousava o caldo de legumes feito de véspera. Preparou-se para «matar o bicho», num ritual que se repetia todos os dias. Encheu de caldo uma velha tigela de grandes proporções e «adubou» o ingrediente com uma grossa fatia de presunto. Puxando do bolso de traz das calças de cotim a sua inseparável navalha de «ponta e mola», começou a cortar fatias de pão de centeio duro, que lançou na malga, para tornar o caldo mais consistente. Enquanto se alimentava, ia pensando: - Não há dúvida! Com o frio que está, vai ser um bom dia de caça. O Chico vivia da caça e da pesca, que vendia com algum proveito. Considerava-se um profissional. Espreitando pelo postigo do casebre verificou, com satisfação, que uma forte geada cobria os campos e um espesso nevoeiro vindo do rio, escondia o horizonte. As condições atmosféricas não o preocupavam. Sentia-se favorecido pois, a coberto do nevoeiro, poderia aproximar-se das presas que pretendia abater. Não havia risco de se perder pois, ninguém como ele, conhecia aqueles montes e vales. Desde criança que calcorreava aqueles sítios a pastorear o rebanho de seu pai. Agora já não há rebanhos por escassearem os pastos e o negócio já não render. Confortado com a tigela de caldo quente, preparou-se para a expedição venatória. Calçou as botas de pneu de cano alto e, por cima da grossa camisola de lã já muito gasta, vestiu a samarra de gola de pele de raposa que comprara no ano anterior na feira de Moimenta. Antes de partir, e por medida preventiva, colocou à cintura, uma pequena cabaça contendo alguma aguardente de boa cepa para aquecer o ânimo. Com a «espanhola» ao ombro, parte esperançado num proveitoso dia de caça.
Após duas horas extenuantes de caminhar sem parar, num sobe e desce constante, senta-se para descansar num pequeno muro divisório meio derrubado. Enquanto bebe um trago de aguardente, põe-se a reflectir: - É estranho! Não consegui aperceber-me de qualquer movimento ou ruído. Nem o piar e o esvoaçar de uma ave. Reina um silêncio invulgar. Nem as folhas das árvores se mexem. Este maldito nevoeiro está cada vez mais denso. Como se fosse um manto invisível que pousa nos nossos ombros e nos deprime e sufoca. Cada vez se vê menos. Até parece que o tempo parou e tudo está morto. Nunca tal vi! Por momentos o Chico sente um arrepio pela espinha acima e os cabelos do cachaço ficarem hirtos como a tropa em sentido. - Mas que é isto?! - pensa para consigo. Até parece que estou com medo. - Qual quê! - murmura para se animar. - Se não tenho medo de nada! Até estou armado! - E bate com a mão na coronha da espingarda como a tranquilizar-se. De súbito, o seu fino ouvido percebe um gargalhar longínquo de mistura com sons musicais indefinidos. Movido pela curiosidade, levanta-se e de arma engatilhada penetra cauteloso no nevoeiro. Vai avançando lentamente e pisando o terreno com cuidado. Aproximando-se do ruído insólito, apercebe-se que as gargalhadas são de mulheres. O facto anima-o a continuar. É um bando de «andorinhas» que se diverte, conclui aliviado. Nota, contudo, que pisa terreno desconhecido. Não reconhece os velhos trilhos. Sente-se perdido, confuso e inquieto. O gargalhar musical ora está longe ou perto, atrás ou à frente. Tomado de pânico, salta valados, escala muros e corre, corre em desatino. Perde a espingarda pelo caminho. De repente, sente-se como suspenso no espaço e só tem tempo para se agarrar, com desespero, ao tronco de uma velha oliveira. Como por encanto, o nevoeiro desaparece subitamente e vê nitidamente à sua volta. Reconhece, com assombro, o local. Encontra-se no alto do desfiladeiro do atalho, sobranceiro ao rio. Um passo mais em frente e seria a queda no abismo. Ao fundo, o rio curva para a direita contornando o penhasco e as suas águas alargam-se. Uma língua de areia forma uma espécie de praia. No leito do rio, como uma ilha, ergue-se um grande maciço rochoso, o penedo do mocho.
Paralisado de espanto, o Chico contempla um espectáculo singular. No areal, um bando de mulheres jovens, mal vestidas de negro, descalças e semi-nuas, dançam com frenesim um ritmo alucinante e sincopado. Gesticulantes e aos gritos inumanos as dançarinas, desgrenhadas, desafiam o Chico a entrar na roda, proferindo obscenidades e exibindo, desavergonhadamente, as suas intimidades. É então que o Chico, ao desviar o seu olhar, descobre o tocador de flauta no cimo do penedo do mocho. Mas que tipo estranho aquele! Só com um amplo barrete vermelho a esconder-lhe a cabeça, bamboleia o seu corpo nu, alto e branco como a cal da parede, ao ritmo da música e bate, com violência, os pés na rocha, como a marcar o compasso. Os pés?! O Chico repara, aterrorizado, que o músico não tem pés. Fita o Chico com o seu olhar sanguíneo e com voz de trovão, intimida: ó Chico vem nadar! Trémulo, o Cotovia reconhece estar em presença do diabo. Persigna-se, convulsivamente, e reza a oração dos aflitos. Então tudo se transforma. O dia fez-se noite. À sua volta tudo treme e relampeja. Ouve o bater de asas gigantes e apercebe-se de monstros voadores em seu redor. Sente-se leve e arrebatado pelo espaço e perde a noção da realidade.
O Hipólito da Fonte, que andava à azeitona, nota no areal, meio submerso, um corpo dir-se-ia dum afogado. Movido pela curiosidade, atravessa a ponte do Vau e dirige-se apressado ao corpo caído. Reconhece, com espanto, o Chico da Cotovia com o cabelo chamuscado e sem sobrancelhas. Sem se conter exclama: - Ó Chico que estás aqui a fazer?! Caíste à lareira com a bebedeira?! A gaguejar, o Chico consegue balbuciar com esforço: - não estou bêbado! Encontrei foi o diabo...em pessoa! -. E desmaiou.